O Belo Ver de Simone
Com O Segundo Sexo a francesa Simone de Beauvoir mudou o modo de reflexionar sobre o feminino no século XX
Com O segundo sexo (Le deuxième sexe; 1949) a francesa Simone de Beauvoir mudou o modo de reflexionar sobre o feminino no século XX. De uma certa maneira, depois da II Guerra Mundial, as reflexões morais da sociedade sobre a mulher estavam mudando; a nova mulher, ou a mulher alterada, já estava na cena social, ainda um pouco disfarçada, ainda um tanto marcada por seus conflitos de sempre. Mas seria preciso que um grande cérebro, efervescente em ideias como o de Simone, estabelecesse em palavras as transformações para que as coisas se aclarassem um pouco. Até que ponto um grande livro é um produto de seu tempo ou ajuda a produzir seu próprio tempo, nunca saberemos bem, pois a simbiose é tão complexa que em sua integralidade nos escapa.
Que importa é que O segundo sexo influenciou o universo do feminismo, e a força de seu verbo alastrou-se por todos os círculos de mulheres, inclusive entre as não-intelectuais, isto é, aquelas que não se disporiam a ler suas mais de novecentas páginas. Relendo-o agora, na adolescência do século XXI, depois de termos acompanhado ao longo de décadas as lutas das fêmeas humanas, pode-se compreender o quanto estas lutas nasceram das ideias de Simone. Neste ano, uma prova do ENEM ressuscitou uma discussão sobre a frase mais conhecida escrita pela pensadora francesa, uma frase que em outros tempos também foi asperamente debatida. É a frase que abre o volume 2 de O segundo sexo: “On ne naît pas femme: on le devient.” Na tradução de Sérgio Milliet: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.” Juremir Machado da Silva, um autor gaúcho, assim a traduziu numa de suas crônicas: “Não se nasce mulher; torna-se.” Como a frase foi escrita por uma mulher, podemos tomar este “on” indefinido do francês e tão coloquial entre eles por um “nós”, e ficaria assim: “Não nascemos mulher; viramos uma.” Que queria dizer Simone com suas duas orações famosas ligadas no original pelo sinal de dois pontos? Que a mulher, tal como existe na sociedade, é uma construção social. Porém, O segundo sexo não é somente uma frase, por mais intrigante e bem formulada que possa ter sido. Logo depois, Simone ainda anota: “é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.” Simone foi uma fêmea da espécie insatisfeitíssima com os destinos marcados; e deu no que deu, um cérebro invejável fazendo os relatos de tudo o que as transformações entre homens e mulheres poderiam trazer.
Também conhecida como a companheira por toda a vida do mítico filósofo Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir soube estabelecer seu “belo ver” (como se lê de seu sobrenome, “beau+voir”) sem que sua identidade própria pudesse ser confundida com Sartre. A grande mulher ao lado do grande homem, já não atrás, ou na retaguarda. Em Saint-Germain-des-Près, onde ficam os bares que ambos gostavam de frequentar, há uma placa onde constam os nomes dos dois, Sartre e Madame de Beauvoir. O viajante ali pode agradecer o prazer desta evocação de velhas leituras sempre renováveis.
Simone revela na abertura de seu livro: “Hesitei muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é irritante, principalmente para as mulheres.” Depois parte para os dados da biologia. “A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la.”
Simone é impiedosa com quase tudo em O segundo sexo. E sua mente luminosa entra nas cavernas para expor a luz. “Lembro-me de uma caverna subterrânea numa aldeia troglodita da Tunísia.” Que vê Simone no antro? Quatro mulheres acocoradas, uma delas a velha esposa desdentada. Saindo da caverna, topou com um corredor de luz onde luzia “o macho vestido de branco, brilhando de limpeza, sorridente, solar.” E conclui: “Para as velhotas enrugadas, para a jovem esposa voltada à mesma rápida decadência, não havia outro universo senão a caverna enfumaçada, de que só saíam à noite, silenciosas e veladas.” Aquilo deve ter chocado bastante uma francesa bem-nascida e inquieta como Simone; e graças a coisas assim O segundo sexo nasceu e mostrou uma certa face obscura do pensamento ocidental no século XX.
Leitora brilhante, Simone radiografa a situação da mulher também analisando seus escritores favoritos. Balzac e seu conservadorismo, por exemplo. “Quando Rastignac quer conquistar Paris, pensa primeiramente em ter mulheres.” Simone poderia ter igualmente referido Armand de Montriveau, o habitante da rue de Seine em A duquesa de Langeais (1834). Ela cruza também por Dostoievski. Percorre Leon Tolstoi e alterna as interpretações dos escritos do autor russo com as revelações dos diários da esposa dele. E na verdade ela só vai topar uma compreensão maior do feminino em Stendhal. “É notável que Stendhal seja a um tempo tão profundamente romanesco e tão decididamente feminino.”
Quer dizer, o mito criado pela posteridade reduziu O segundo sexo à sua frase famosa. Mas o livro é muito mais do que somente aquela frase. Nesta época de leitores preguiçosos, evidentemente é mais cômodo definir as coisas por uma frase. Quem, nestes anos pós-telegráficos, de abreviações individualistas e obscuras, se abalançaria a enfrentar um raciocínio tão feroz e provocativamente irritante por mais de nove centenas de páginas? No entanto, tudo o que ali vai em meditações veio a agir sobre isto que vivemos hoje, inclusive sobre o que é vivido por aqueles que não enfrentam a leitura do longo texto de Simone de Beauvoir, um texto dotado de um belo ver.
Os conflitos esboçados ao longo de O segundo sexo parecem quase inconciliáveis, e são pedregosos. No entanto, o humanismo de Simone vai no final atrás de um sopro benfazejo, é a busca do humano dentro do conflito homem-mulher. “É no seio do mundo que cabe ao homem fazer triunfar o reino da liberdade; para alcançar essa suprema vitória é, entre outras coisas, necessário que, para além de suas diferenciações naturais, homens e mulheres afirmem sem equívoco sua fraternidade.” Seria possível?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br