O Rigor de Ver e Ouvir
Lúcia Murat chega a seu mais belo filme: Em três atos (2015) respira beleza em todos os seus poros
Lúcia Murat chega a seu mais belo filme: Em três atos (2015) respira beleza em todos os seus poros. O êxtase de ver e ouvir é executado com todo o rigor pela realizadora: como num filme do francês Robert Bresson, as imagens e os sons parecem encaixar-se uns nos outros para que não haja fissuras nem coisas fora do lugar ou de tempo. Os corpos ocupam os cenários em pleno êxtase. As vozes das atrizes Andrea Beltrão e Nathália Timberg, dizendo os textos da escritora francesa Simone de Beauvoir, atravessam o esplendor das imagens e cravam-se no pensamento, que é uma reflexão áspera e acerba sobre a velhice, título de um dos livros de Simone utilizados. As panorâmicas (movimento constante e lateral da câmara por uma ambientação) pela cidade se alternam com a câmara diante de algumas esculturas místicas que habitam a urbe; no mais, a câmara se delicia em acompanhar os corpos das intérpretes, Andrea e Nathalia são espelhadas nos bailados de Maria Alice Poppe e Angel Vianna.
Em três atos é o mais abstrato e metafísico dos filmes de Lúcia, que já mergulhou no intimismo dos anos de chumbo em Que bom te ver viva (1989) e Uma longa viagem (2011), aproximou-se do subúrbio em Maré, nossa história de amor (2007) e investiu na questão indígena em A nação que não esperava por Deus (2015). Geralmente voltada para aquilo que se passa em torno, Lúcia agora penetra no interior do humano, investigando sua forma de envelhecer e de encarar seu fim. Os três atos são bastante claros: o corpo, a morte, a despedida; o prazer físico, seu cessar, o retirar-se do mundo.
Em três atos é um oásis em nosso cinema. Suas dificuldades de assimilação por parte do público, mesmo algum mais sofisticado, tem posto freio a uma possível carreira comercial da realização. Mas mereceria uma divulgação que o fizesse topar sua plateia. A narrativa tem uma hipnose em sua condução rítmica que pode vir a financiar a quem ama um cinema longe, muito longe da vulgaridade diuturna do cinema. Fechado em seus parâmetros de encenação, permitindo às atrizes declamarem sem pudor um texto literário (é uma coprodução francesa, lembremos, para evocar certos termos de associação entre cinema e literatura), Em três atos tem, talvez, uma só aproximação no cinema nacional: Solo (2009), de Ugo Giorgetti, uma espécie de narrar em que os solilóquios dos intérpretes buscam no espectador um espelho da própria personagem —é o que se passa quando o ator está falando diante da câmara sem ninguém que contracene com ele; aí podemos estar diante do demente solilóquio do próprio observador de cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br