O Léxico, a Sintaxe e a Paixão em Camilo
O romancista português Camilo Castelo Branco é uma das honras da língua portuguesa
O romancista português Camilo Castelo Branco é uma das honras da língua portuguesa, por mais que uma afirmação assim possa parecer arcaica. No começo de Coração, cabeça e estômago (1862) sua personagem, que é quem toma as rédeas de narrador, anota numa irônica observação feminil: “Leontina não tinha caligrafia nem ideias; mas os olhos eram bonitos, e o jeito de encostar a face à mão tinha encantos.” Assim também com a arte de Camilo: aparentemente romântico, tinha certas ardências não-românticas; pré-realista, misturava o caos humano desordenadamente; mas, com todo o seu arcaísmo incômodo, com toda esta caligrafia entre o popular e o desusado, tinha (e tem) encantos de que somente Camilo dispunha (ou dispõe, considerando a perenidade de sua arte).
Cabeça, cabeça e estômago se estrutura em torno de diversas histórias presenciadas e contadas por um único narrador, a figura erigida por Camilo para dizer das coisas. É como se diversos contos pudessem alçar-se a um romance, melhor dito, a uma novela, pequenos enredos que se entrelaçam às vezes desentrelaçando-se. “O meu noviciado de amor, passei-o em Lisboa. Amei as primeiras sete mulheres que vi, e que me viram.” Assim começa o capítulo Sete mulheres, cuja primeira amada do coração é a dita Leontina, sem caligrafia mas com encantos gestuais —como, talvez, a linguagem de Camilo. Na última das sete fêmeas, lemos: “Eu tinha um amigo que se namorara duma modista francesa, e me pedia que fosse o intérprete do seu coração, na língua de Vítor Hugo.” Conclusão: “Acabou assim a história das sete mulheres, número cabalístico, de cuja misteriosa influência me ficou a alma um pouco derramada.”
Mas a coisa não termina aí. A personagem segue a divagar. O título anuncia o que deve surgir: A mulher que o mundo respeita. Senão quando: “É certo que eu, num dos meus passeios desabridos, quando o céu afuzilava relâmpagos, fui caminho de Cintra, e vi na balaustrada de uma varanda, com os olhos postos no ocidente tempestuoso, uma mulher, que se me afigurava a pomba da boa-nova ao quadragésimo dia do dilúvio. Retive as rédeas do cavalo, sofreei a respiração, contemplei-a com petulante ternura, e ela foi-se embora.” Os admiradores fora-do-tempo de Camilo não veem seu arcaísmo; “não há nada disto” me disse uma vez o intelectual gaúcho Décio Freitas, camiliano dos quatro costados que alegava que Camilo escrevia como os portugueses falavam. Na verdade não é bem assim: Eça de Queirós é português e no entanto seu léxico e sua linguagem são mais modernos e mais acessíveis ao ouvido brasileiro que aqueles de Camilo. O que não interfere numa revelação: Camilo supera, em complexidade e criação, a Eça.
Esqueçamos estas picuinhas de literatos. Vamos ao golpe de mestre com que Camilo dá encerramento às fragmentações de sua novela, conferindo-lhe inesperada umidade. “De como me casei” é o título do capítulo final. “Procurei o refúgio dos penates” narra Camilo. A mulher para casar: Tomásia. O diálogo de exemplar naturalidade entre o homem e Tomásia, apesar dos arcaísmos e também dos trejeitos arcaicos de Camilo espanta o leitor moderno — é uma peça e tanto.
“—Quantos anos tem a senhora Tomásia? —perguntei.
—Vinte e seis, feitos pela Santa Luzia.
—Muito bem empregados. Admiro que vossemecê não esteja ainda casada!
—Ainda não é tarde.
—Também digo: mas quem é tão bonita como a Srª Tomásia onde quer acha um noivo.
—Sou sã e escorreita, Deus louvado. Se lhe pareço bonita, isso é dos seus olhos. Coma uma colher de requeijão, e beba, que o vinho está muito fresco.”
Sou camiliano dos quatro costados. Leio seus arcaísmos (lexicais, sintáticos) e vejo o encanto da face que se aproxima da mão. O crítico Álvaro Lins, comentando livros do romancista brasileiro Graciliano Ramos, aludia a uma possível linguagem artificiosa de Camilo, que seria uma das influências centrais dos processos narrativos e linguísticos do romancista de Alagoas. É bem possível que haja artifícios demais em Camilo: Graciliano, seu leitor, os depurou. Mas eu, que me formei na língua lendo a Camilo, não logro compreender os caminhos de meu idioma sem a prosa de Camilo Castelo Branco.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br