A Linguagem Que Perambula

Mia Couto escreve como quem vai perambulando pela sintaxe e pelos significados das palavras

09/09/2016 23:00 Por Eron Duarte Fagundes
A Linguagem Que Perambula

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Mia Couto escreve como quem vai perambulando pela sintaxe e pelos significados das palavras: uma frase trêmula e frágil que não se ausenta de sua ingenuidade mas vai adquirindo consistência narrativa. Um sonambulismo de escrever: como acordar no meio da noite para descobrir personagens. Terra sonâmbula (1992) é provavelmente seu romance mais feliz em achados e texturas; unindo uma personalidade poética, uma veia popular e algum arcaísmo que se renova, Mia encanta o velho leitor de língua portuguesa.

Diz alguém: “Me chamo Farida, começou a mulher o seu relato. Falava com voz baixa, em rouquidão que vinha da timidez. Conservei-me afastado, de olhos no chão. Durante a sua longa fala me calei como uma sombra para lhe dar coragem. A mulher se trocou por palavra até quase ser manhã.” Atacar de cara com o pronome oblíquo no início da oração, um quase imperativo doce, aquilo que chamam brasileirismo existindo também em Moçambique: me chamo, me chamem. Então me ponho a navegar, seguindo Mia, em meu próprio imaginário literário. Quem é Farida? Busco aliterações literárias que me penetram. Farida, Faustine, Fantine. O francês Victor Hugo (Fantine) e o argentino Adolfo Bioy Casares (Faustine) fornecem os outros efes de personagens; uma é o sofrimento romântico (Fantine), outra é a miragem nostálgica (Faustine), e Mia, como um gato no escuro, parece farejá-las com sua Farida. Esta é feita de palavras. O narrador a cria com seu verbo. E também ela, no real inventado, se converte em palavras durante uma noite de conversas. “A mulher se trocou por palavra até quase ser manhã”. Alguém esquece o resto do corpo para ser somente uma boca que fala, palavras: lembrar alguém como um conjunto de palavras numa noite sem dormir.

É um tanto difícil escrever de um romance tão mágico quanto Terra sonâmbula, que é na verdade uma terra verbal que treme, são pequenas luzes que pontuam os escuros narrativos. “O poço estava seco, devido da ausência das chuvas.” Surpreendem as preposições. E as fantasias, como se escreve a certa altura do livro, são estados “em que havia entrado” e “eram sem retorno”.

Mia Couto nubla nossas percepções linguísticas, para nos abrimos para um modo novo de ler. Esta sensibilidade de ler passada ao leitor é, penso agora, o achado nevrálgico da escrita de Mia, aqui e em seus outros textos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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