Um Cinema Cada Vez Mais Dificil

A patriota mostra tudo aquilo que os analistas dizem de Kluge: ele eh dialetico, politico e cientifico.

12/11/2020 14:02 Por Eron Duarte Fagundes
Um Cinema Cada Vez Mais Dificil

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Sempre se disse que as dificuldades estilísticas de um filme tendem a amenizar-se com o passar dos anos, pois aquilo que era novidade na época da produção acabaria por ser incrustado na linguagem do cinema comercial, tornando a antiga película mais fácil de ser consumida pelo público. O brasileiro Glauber Rocha, protótipo do cineasta difícil entre nós, dizia que cedo ou tarde isto aconteceria com todos os seus filmes; pode ser que isto (a facilidade de compreensão ao longo do tempo) tenha ocorrido na obra de Glauber, embora seus herdeiros nunca possam aspirar (a não ser por ingenuidade) a alçá-lo à categoria comercial.

Mas com A patriota (1979), obra-prima do alemão Alexander Kluge reapresentada há vários anos no cinema Santander de Porto Alegre, nada disto é verdade. Nenhuma de suas inovações (e são muitas, pode-se dizer que ele é um dos raros cineastas do mundo que refaz o cinema em cada fotograma) foi apreendida pelo cinema nestas tantas décadas  que circularam depois de seu aparecimento no fim dos anos 70, sempre em circuitos alternativos, frequentados por curiosos em novidades fílmicas; pode-se dizer que a experiência de revê-lo é ainda mais complicada do que aquele primeiro contato que em determinada quadra se pode ter com o filme numa sessão promovida pelo Instituto Goethe, pois o cinema dos anos que se sucederam depois do filme de Kluge  deu passos para trás em matéria de ousadia formal buscando antes a faceirice das bilheterias. Bombardeado pelas funções-padrão da imagem cinematográfica que adaptam a mente do observador a um jogo visual estereotipado e fácil, este mesmo observador, ao dar com A patriota (ou qualquer outro trabalho de Kluge), vai incomodar-se com a absoluta liberdade de filmar que o cineasta exercita; e este incômodo é seguramente maior do que aquele que ocorria nos anos 80, pois o cinema nos habituou (e este “nos” não é forma de expressão, inclui de fato o autor destas linhas) à preguiça cinematográfica, uma forma passiva de ver. A patriota, em todas as suas visões e revisões de meu aprendizado cinematográfico, trouxe para mim uma exigência com o cérebro que triplicou no passar dos anos, como a longa e rigorosa sequência da convenção partidária e a desconcertante dialética em latim intercalado despejada pelo comentário-over.

CONVERSANDO COM KLUGE

Os filmes do cineasta alemão Alexander Kluge são como partes de uma longa, intensa e interminável conversação sobre as pessoas contemporâneas. Seus admiradores poderíamos ficar uma noite inteira conversando com Kluge: ele não nos cansa porque é um dos poucos realizadores da atualidade que em cada proposição de imagem tem coisas de profundidade narrativa para nos dizer. O processo de construção cinematográfica adotado por Kluge é, ao mesmo tempo, o mais simples e o mais complexo possível: ele filma tudo o que lhe parece importante filmar –um arbusto numa fronteira perigosa, um plano-sequência à distância de um homem que fuma e depois joga o cigarro fora, dois operários conversando trivialmente sobre seu trabalho—e depois monta seu filme; o material filmado que sobra poderá ser usado noutro filme, porquanto um é a continuação do outro e todos são peças de um diálogo que Kluge mantém com o espectador sobre o homem moderno a partir duma visão do homem alemão. Este processo de utilização de sobra de material de um filme em outro filme fez com que o crítico gaúcho Tuio Becker, numa daquelas muitas conversas que eu e ele tínhamos ao pé de Kluge na década de 80, arranjasse uma expressão precisa para definir o cineasta:arquivista de imagens.

A patriota mostra tudo aquilo que os analistas dizem de Kluge: ele é dialético, político e científico. Mas, antes de qualquer coisa, é um cineasta, ou seja, é alguém cujo material de trabalho é a imagem cinematográfica e cuja função é pensar em cima desta imagem. Um pensador cinematográfico. Ele não derrama suas idéias como um pensador que se utilizasse ocasionalmente do cinema, ele não utiliza o cinema assim como poderia utilizar o jornal ou o livro (à maneira de alguns diretores neorrealistas). Kluge pensa o mundo cinematograficamente. Ele sabe que está fazendo cinema e que o cinema, mesmo na encenação mais naturalista, filtra a realidade. Sua dialética, sua política e sua ciência são essencialmente cinematográficas; a dialética em sua obra nasce da oposição encenar-documentar que ele articula para criar suas experiências novas com a imagem; em determinada cena ele faz referência direta a este processo: filma longamente e à distância um homem que fuma, e fala em documentário, ele não conhece a história pregressa daquele homem, filma sua aparência num momento; depois opõe a esta cena a de um bombardeio, e chama encenação, por causa do drama e da tensão. Poderíamos permutar os conceitos entre as imagens (homem que fuma=ficção; bombardeio= documentário), e não alteraríamos a essência do pensamento de Kluge, ao contrário a reforçaríamos.

Todo o filme é assim: um jogo entre o lado documental e o lado ficcional do cinema. Um cientista cinematográfico. Unindo suas cenas pela presença da professora de História Gabi Teichert, Kluge vale-se de gravuras antigas, fotografias fixas, paisagens mortas, cenas reais, outras encenadas a partir do real para discutir a história alemã contemporânea e, por extensão, a história do mundo; assim como a História contada nos livros pode e deve ser trabalhada, para favorecer o homem, misturando os diversos modos de reconstrução do real. Os bombardeios da II Guerra Mundial e o terrorismo no século XX marcam fortemente a realização, como marcariam o documentário Guerra e paz (1983), correalizado por Kluge, Volker Schloendorff e outros. A ciência de Kluge está nisto: uma reflexão livre da História, o grau extremo de um filme aberto.

Visualmente, a inventividade e a inquietação de Kluge sobressaem. Contando com diversos diretores de fotografia, ele oscila entre imagens a cores (algumas foscas, outras brilhantes) e um desbotado preto-e-branco (que é a maior parte da fita). Visões da metrópole moderna, sobre as quais insiste o olhar do cineasta, revelam sua perplexidade diante deste mundo em apuros. O humor negro de Kluge se manifesta mais incisivamente na exposição de teorias sobre os contos de fadas. A montagem bastante libertina da narrativa é que faz a política cinematográfica de Kluge.

Conseguindo eliminar as diferenças entre o documentário e a ficção (tudo é real e ao mesmo tempo inventado por fazer recair na montagem e na interpretação seu ponto alto), A patriota mantém o gosto de Kluge pelo absurdo, pelo comportamento inexplicável, pela quebra da lógica. Um narrador-over, que se autodenomina joelho morto, descarrega uma série de estranhas frases contra o espectador; tão estranhas quanto as imagens do próprio filme assim como aparecem na tela, despidas, pela montagem e pelo ritmo de sua sucessão, de seu aparente realismo (enfim, alguém sabe o âmago da relação entre uma história de amor e a História?). O apuro provocativo de Kluge em semear situações absurdas foi radicalizado ainda mais em O ataque do presente contra o restante do tempo (1985): neste filme o narrador-over chega ao cúmulo de propor a própria eliminação do filme, substituindo-o por sua descrição ao telefone. Afinal, como diz um letreiro de A patriota (os letreiros são na verdade a voz silenciosa do comentador-over), quanto mais se examina uma palavra mais perto se chega de sua origem; e poderíamos dizer assim: quanto mais se examina uma imagem mais perto se chega de sua origem; quanto mais se examina um homem mais perto se chega de sua origem.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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