O Lobisomem Mirim Brasileiro
as perversoes formais e tematicas sutis tornam As boas maneiras uma experiencia cinematogra?fica de interesse ininterrupto
Juliana Rojas tem a seu crédito a direção de dois filmes: Trabalhar cansa (2011) e Sinfonia da necrópole (2016). Marco Dutra dirigiu três filmes antes: Trabalhar cansa (2011), Quando eu era vivo (2013) e O silêncio do céu (2016). Como se vê, ambos dividiram a direção de Trabalhar cansa. Agora, depois de alguns trabalhos sozinhos, voltam a partilhar o ofício de dirigir: As boas maneiras (2017) é a narrativa mais intensa destes dois cineastas, aquela em que o senso cinematográfico está mais apurado; as rupturas e inconstâncias do cinema de Juliana e de Marco, conquanto ainda estorvem a fruição plena do objeto que se está vendo, são deixados de lado pelo espectador para que a paixão de ser engolido por uma constante criatividade da fantasia se debruce na sala de cinema.
Curiosamente a atmosfera de realismo subterrâneo de As boas maneiras se parece mesmo com aquele de Sinfonia da necrópole, o trabalho sozinho de Juliana, parecendo-se um pouco com certas coisas que o realizador paulista Ugo Georgetti pôs em seus filmes. Mas as grandes referências cinematográficas de As boas maneiras são os clássicos O bebê de Rosemary (1968), do polonês Roman Polanski, e Um lobisomem americano em Londres (1981), do americano John Landis, sobretudo este do lobisomem na atmosfera do fantástico penumbroso e na utilização de músicas e canções que Juliana e Marco inserem em sua história. (Bom, o bebê-monstro gerado no filme, e pelo filme, de Juliana parece uma mistura da estranheza climática de Polanski com as formas de fantasia infantil do extraterrestre do americano Steven Spielberg; arriscando-se um pouco nas equivalências.)
A narrativa de As boas maneiras é quebrada em duas partes. Na primeira uma patroa branca grávida e uma empregada negra que deverá ser a babá do futuro bebê se relacionam esquisitamente, com direito a sequências erótico-vampirescas fortíssimas. Na segunda parte a patroa desaparece sem explicações de cena e a ex-babá (antes calada, submissa) é uma ativa e dominadora e superprotetora mãe do menino (agora crescidinho, com seus rompantes noturnos de lobisomem mirim); o espectador, que viu a primeira parte, sabe que ela não é a mãe do menino, mas o cria assim, acompanha a história que se debruça então na relação entre mãe preta e filho branco e nos reflexos que o passado da primeira parte (a mãe da primeira parte surge na segunda parte como imagem numa fotografia vista entre as coisas da mãe da segunda parte) traz sobre a nova relação mãe-filho da segunda parte. O dueto entre Marjorie Estiano e Isabel Zuaa é magnífico; Marjorie consegue equilibrar-se bastante bem diante da atuação devoradora de Isabel do primeiro ao último plano de sua participação no filme. Quer dizer, os desempenhos, inclusive o do menino Miguel Lobo, transbordam da tela.
É claro que a narrativa tem lá suas irregularidades, seus pequenos tropeços de encenação na captação do fantástico do cotidiano. No entanto as inquietações, as perversões formais e temáticas sutis tornam As boas maneiras uma experiência cinematográfica de interesse ininterrupto.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br