O Cinema Barbaro de Herzog
A capacidade visual de Herzog atinge nesta pelicula um de seus picos
O cineasta alemão Werner Herzog está meio fora das discussões cinematográficas deste início de milênio. Mas seria ele o artista apropriado como signo de um mundo que navega para a demência. Neste aspecto, a possibilidade de rever, por qualquer meio, um dos mais belos filmes de Herzog, Aguirre, a cólera dos deuses (Aguirre, der zorn Gottes; 1972) é um gancho para se recomeçar a analisar os significados de seu atormentado cinema; o protagonista desta realização, Lope de Aguirre, um homem torturado pela vontade de poder que assume as rédeas duma expedição de Gonzalo Pizarro rio Amazonas afora no seio dos destroços do império inca, é tanto o símbolo de todos os ditadores americanos que vieram pelos séculos adiante quanto a encarnação do indivíduo que agora se destrói no hospício de sua ambição (por exemplo, a câmara que circula alucinadamente em torno da embarcação onde Aguirre segue a singrar rodeado de seus comandados mortos, entre eles sua própria filha atingida por uma flecha dos índios).
A capacidade visual de Herzog atinge nesta película um de seus picos. Os planos exacerbantes e hipnóticos do rio, da mata e dos homens adotam uma elaborada lentidão que Herzog já exercitara com brilho extravagante em Fata Morgana (1969) e Também os anões nasceram pequenos (1970), duas experiências cinematográficas radicais; os diálogos são intersticiais e não cooperam muito na progressão narrativa, esta progressão nasce mesmo da articulação plástica das imagens. Apesar de conter um roteiro que aparentemente se vai construindo com alguma improvisação (um filme-viagem pela mata com muita libertinagem formal), o rigor estilístico de Herzog é inteiramente fechado e secreto; Herzog documenta a realidade ao levar seu elenco a praticamente viver as dificuldades da travessia narrada.
Feito de uma críptica iluminação e de silêncios perturbadores entre imagens de notável força, Aguirre, a cólera dos deuses é conduzido pelo diário do Frei Gaspar de Cavajal e mais adiante se cruza com este diário uma voz-over que reproduz os pensamentos do próprio Aguirre à medida que seu delírio se torna mais agudo. O desempenho selvagem de Klaus Kinski como Aguirre é um trunfo do método do relacionamento de Herzog com seu ator-fetiche, como se descobriu vendo o documentário Meu melhor inimigo (1999), rodado por Herzog anos após a morte de Kinski. Para nós brasileiros salienta-se ainda a presença escassa mas precisa do cineasta Ruy Guerra na pele do idealista Pedro de Ursua que vem a ser enforcado ilegalmente por Aguirre.
Herzog voltou à selva amazônica em outro grande filme, Fitzcarraldo (1981). Mas Aguirre é um marco do cinema e a influência deste filme rigoroso e sem concessões deu-se inclusive no cinema comercial, numa obra-prima como Apocalypse now (1979), do norte-americano Francis Ford Coppola, e numa obra mais desleixada como A missão (1986), dirigida pelo inglês Roland Joffé, ou ainda na realização gaúcha Anahy de las missiones (1997), de Sérgio Silva, todos filmes em que realidade da encenação e realidade do encenado se permutam.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br