Huysmans: Literatura a Parte

Sac au dos de Joris-Karl Huysmans eh o rito de passagem duma personagem, Eugene Lejandel

13/07/2020 14:22 Por Eron Duarte Fagundes
Huysmans: Literatura a Parte

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Charles-Marie-Georges Huysmans nasceu em Paris em cinco de fevereiro de 1848. Depois de ter morado na Holanda, com a alteração fonética dada pelas pessoas do local, adotou o nome de Joris-Karl Huysmans. É com este nome que ele passou à história literária: sempre como alguém que corre por fora nas brigas da literatura francesa; mas com uma originalidade dentro das letras da França que ainda espanta.

Em seus inícios literários, Huysmans aliou-se à corrente em voga entre os escritores franceses: o naturalismo; frequentou o Le groupe Médan, onde circulavam os autores ligados ao grande mestre de então, Émile Zola. Guy de Maupassant, um dos frequentadores deste grupo, em seu Étude sur Gustave Flaubert (1884), chega a referir brevemente nosso autor em questão: “Voici Huysmans, Henrique Céard d’autres encore, Léon Cladel le styliste difficile et raffiné, Gustave Toudouze.” Huysmans faleceu em 12 de maio de 1907. Recentemente, sua literatura foi recapturada pelo mais famoso escritor francês de hoje, Michel Houellebecq, no romance Submissão (2015). Os problemas do semi-esquecimento de Huysmans se prendem ao fato de, começando atrelado ao naturalismo, rompeu com o grupo a partir de meados dos anos 80 do século XIX; se Gustave Flaubert já repreendia o receituário da estética e da retórica de Huysmans, depois do rompimento declarado, ele perdera seu tutor central, Zola —estava aberto o caminho para a ignorância dos pósteros.

Só a leitura pode salvar-nos da ignorância decretada pela história oficial. Então uma imersão nos dias de hoje no texto da novela Sac au dos (1880). Um pouco pela época em que foi escrito (antes de 1884, quando a publicação de À rebours radicalizou as diferenças entre Huysmans e os naturalistas), o livro é tido como um exemplar do naturalismo francês. É uma posição demasiado fácil: mais cronológica que crítica. A leitura do texto de Sac au dos leva a outras constatações que funcionam como uma diáspora para com essa geometria histórica: não há quase nada de Zola nesta novela; o que vemos na escrita, apesar das características de minúcias de observação do gestual individual e social de sua época (é bom saber que esta ficção é autobiográfica em aspectos, pois há um pouco do memorialismo da vida militar do autor) já é aquilo que a ensaísta e professora Janaína Pinto Soares chama “naturalismo místico”: há coisas que transcendem, diversamente dos retratos de Zola ou Faubert, nas evocações de Huysmans, uma aproximação melhor seria o poeta Charles Baudelaire, e ao poeta e a Huysmans, recorro de novo ao ensaio de Janaína sobre o prosador de Sac au dos: “faiseur de l’art de la plume avant tout, voulant affirmer son style particulier.”

Sac au dos é o rito de passagem duma personagem, Eugène Lejandel. Janaína traduziu o título como “De partida”. Poderia ser também: “(De) malas prontas”. Ou: “(De) mochila às costas”. Já no parágrafo inicial Huysmans define o rito que construirá o ritmo de sua história: “Aussitôt que j’eus achevé mes études, mes parents jugèrement utile de me faire comparoir devant une table habilée de drap vert et surmonté de bustes de vieux messieurs qui s’inquiétèrent de savoir si j’avais apris assez de langue morte pour être promu au grade de bachelier.” (“Assim que terminei meus estudos, meus pais acharam útil fazer-me comparecer diante duma mesa revestida de toalha verde e dominada por bustos de velhos senhores que se preocupavam com saber se eu aprendera o suficiente de língua morta para ser promovido ao grau de bacharel.”) A ironia fina e no entanto devastadora do narrador de Huysmans conduz, já, àquilo que Jananía cognominou “naturalismo místico”: sobra para todas as coisas arcaicas, do grupo familiar à banca vetusta que recebe o jovem estudante; os estudos obrigatórios, a toalha verde duma mesa solene, a língua ligada à necessidade do grau de bacharel —a ponta ferina da pluma (a arte da pluma antes de tudo, reitero Janaína) de Huysmans faz estragos terríveis no estabelecido que o antecedeu. Assim como o próprio autor faria depois ao largar o grupo de Médan: imagino que Huysmans já se sentisse pouco à vontade nas solenidades literárias de Zola e seus asseclas. Mesmo posto historicamente, e por preguiça, dentro do naturalismo, Sac au dos já dizia isto.

Depois da introdução do momento da mudança de rito, Sac au dos parte mesmo. Para a linha de frente. A personagem está no meio da guerra franco-prussiana, que ocorreu em 1870-1871, dez anos antes de ser narrada por Huysmans. Formada em Direito, a personagem sentia-se deslocada no meio. Não entendia a instabilidade verbal do mundo jurídico: “il me semble qu’une chose clairement écrite ne peut raisonnablement comporter des interprétations aussi diverses” (“parece-me que uma frase claramente escrita não pode, racionalmente, comportar interpretações tão diversas.”). Eugène só estava esperando a oportunidade para cair fora. Esta oportunidade veio: o Imperador o chamou para as tropas francesas nas lutas contra os prussianos. Como se houve o jovem intelectual na linha de batalha? A passagem (etária e cerebral) não foi fácil. “La puberté de la sotisse m’était venue.” (“A puberdade da estupidez me sobreveio.”). Em seu périplo bélico, Eugène topou com criaturas estranhas como relâmpagos que lhe apareciam ao despertar de um sonho e a quem ele exclamava, agastado e espantado: “Allez-vous-en, laissez-moi dormir!”). Uma doce e esquiva irmã que o atendera num hospital de guerra. Um amigo com quem dividia o companheirismo das diversões e das agruras. E, a bordo do trem que o traz para casa no fim do livro, uma moça chamada Reine com que ele tem um erotismo suave, fugidio, aquele “naturalismo místico” a que alude Janaína em seu estudo. A última cena de Sac au dos recompõe algo destes momentos da aventura militar da personagem e vai dar num estranho conforto do lar. “Je me suis chez moi, dans des cabinets à moi! et je me dis qu’il faut avoir vécu dans la promiscuité des hospices et des champs pour aprécier la valeur d’une cuvette d’eau, pour savourer la solitude des endroits où met culotte bas, à l’aise.” (“Estou em casa, no meu próprio banheiro! e me digo que é preciso ter vivido na promiscuidade dos hospícios e dos campos para apreciar o valor duma pia com água, para saborear a solidão dos lugares, onde podemos baixar as calças livremente.”).

No começo de Sac au dos a personagem quer partir para se livrar das prisões domésticas. No último movimento da trama esta mesma personagem amadurece algo como estar em casa, nos espaços íntimos domésticos, para se livrar das prisões que existem lá fora, regras e preconceitos. Em ambos os casos: a busca de ser livre. Esta é, também, a busca de Joris-Karl Huysmans, aquilo que Janaína Pinto Soares indica como “voulant affirmer son style particulier”. Sac au dos já era, no corpo do naturalismo histórico, um esforço estético que partia nesta busca: baixar as calças como se ninguém, o grupo majoritário da época especialmente, o estivesse vendo.

NOTA: As traduções do texto de Huysmans para o português que aqui constam foram feitas por este comentarista; a despeito da bela tradução pré-existente de Janaína Pinto Soares.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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