Lúcio Cardoso: O Arroubo do Verbo

Os Diários de Lúcio são um momento sublime do pensamento literário brasileiro.

21/03/2014 15:16 Por Eron Fagundes
Lúcio Cardoso: O Arroubo do Verbo

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Quem nunca leu o escritor mineiro Lúcio Cardoso não sabe dos espinhos espirituais que uma certa linguagem pode conter. A língua portuguesa topa os perigosos abismos, seus delírios latinos.

“Apanha-me agora a sensação de vazio que costumo sentir e que certamente não é a nostalgia das certezas perdidas. É impossível viver assim. Solto-me, largo as amarras e vou; não há nada que me prenda. Há horas em que verdadeiramente saio do mundo. Quem sabe se não me dissolverei? Pouco a pouco os pensamentos, as ideias, a consciência vão fugindo, fugindo, e assim talvez eu acabe por acabar de todo alguma vez.

Apavoro-me com isso.”

A reedição dos Diários (1942-1962) de Lúcio, pela Civilização Brasileira, organizada por Ésio Macedo Ribeiro, é de saudar. As anotações íntimas de Lúcio, falando de si mesmo, de suas letras, de seus pares literários ou artísticos, de outras coisas da vida brasileira, são uma iluminação: iluminam o próprio processo de edificação dum artista como Lúcio num meio cultural, como o brasileiro, que tende à superficialidade. No caso de Lúcio, a leitura e a releitura de A luz no subsolo (1936) —mais do que em Crônica da casa assassinada, 1959, seu belo romance mais badalado— impressionam pela forma da utilização das palavras e das construções sintáticas para criar um soturno brasileiro e mineiro que, se em alguns momentos está à sombra de seu mestre Dostoievski, é na maior parte do tempo uma erupção única.

Mesmo quando fala mal de livros hoje consagrados, como Memórias do cárcere (1953), do alagoano Graciliano Ramos, Lúcio é fiel à sua vocação romanesca, um destes escritores em que a poesia da linguagem informa essencialmente a estrutura narrativa. Quem mais na literatura brasileira? José Geraldo Vieira, Cornélio Pena (que foi amigo de Lúcio, que, após a morte de Cornélio, chegou a topar com a viúva do amigo, como está relatado, dentro dos aspectos de comoção da prosa de Lúcio, nos Diários) e, ufa, hoje em dia, Juremir Machado da Silva, que já confessou sua paixão por versos e se vê bem em seu texto de prosa os interstícios desta paixão.

Há nos Diários encontros pedregosos com a correspondência do gaúcho Paulo Hecker Filho, poeta e crítico literário. Há a experiência frustrada de tentar ser cineasta: um filme inacabado, onde as dificuldades de adaptação à materialidade do set cinematográfico por parte de Lúcio são bastante claras. Mas, pelas anotações, vê-se que Lúcio conhecia bem cinema. E exclama ele: “Sofrer, sofrer, sofrer; e depois ir ao cinema.” Mas a literatura é nele maior que tudo: “Nos intervalos de filmagem, nas longas horas de expectativa, deitado na grama ou no terreno nu, sinto uma palpitação que não me é desconhecida, qualquer coisa que desce à ponta dos meus dedos, e que se chama a necessidade de escrever.” Que é a necessidade de escrever em Lúcio? Uma explosão: a faísca que vira fogueira.

“Lendo o novo romance de X, sinto que as palavras a consomem. As ideias são simples, em palavras de rebuscado brilho. O que em última análise nos dá a impressão de um alto coche funerário, paramentado de joias e plumas densas de solenidade, mas que transportasse agora o magro cadáver de um recém-nascido. Que me perdoem a imagem, mas toda essa história, sem o seu aparente luxo, daria no máximo um conto. O resto, traz o signo do histérico: ela luta com as expressões como se quisesse exauri-las de toda essência.” De quem fala Lúcio? De sua amiga Clarice Lispector? Em certos conceitos parece uma destas críticas que se faziam (ou ainda fazem) à ficção de Clarice. As palavras a consomem. Lúcio, mais próximo de Clarice do que tantos outros, especialmente pelas tensões do verbo, na verdade consome as palavras no mesmo instante em que é consumido por elas.

É curiosa também a paixão de Lúcio por outro mineiro, tão longe dele: Guimarães Rosa. Mineiro entende mineiro melhor do que qualquer outro ser. “Foi num desses noturnos que visitei as toras queimadas e de vegetação baixa que aparecem em Sagarana e Corpo de baile. Trem poeirento e desconjuntados com caipiras jogando cartas em malas postas sobre os joelhos. Em Sete lagoas embarcou um time de futebol —e durante o percurso iam soltando foguetes pela janela. Às vezes erravam e a vara silvava dentro do mesmo vagão, indo explodir contra o porto.”

Os Diários de Lúcio, cruzando algumas décadas do século XX, são um momento sublime do pensamento literário brasileiro.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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