A Crônica Policial no Cinema
Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia apresenta algumas situações que podem ter envelhecido
Um dos filmes mais conhecidos do argentino (que fez cinema brasileiro) Héctor Babenco é Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977). Foi extraído do romance-reportagem homônimo escrito por José Louzeiro, que também ajudou no roteiro do filme de Babenco. No entanto a narrativa cinematográfica tem a espontaneidade de quem hauriu as cenas diretamente da realidade, como uma cinebiografia —meio jornalística, meio estrutura policial — do bandido carioca Lúcio Flávio Lírio cujos contatos com o Esquadrão da Morte nos anos 70 eram problemáticos e escusos.
Louzeiro, o autor do livro, para produzir seu relato, conversou muito com o próprio Lúcio, antes da morte do assaltante de bancos, que se dera em 1975. Algo um pouco parecido com o que fez o americano Truman Capote, que teve longas entrevistas com os facínoras que viraram personagens de seu romance de não-ficção A sangue frio (1966). O que fica no filme é esta impressão de contato carne a carne da figura de Lúcio com a câmara de Babenco.
À parte suas virtudes narrativas e sua importância como retrato das relações de corrupção do poder policial numa determinada época, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia apresenta algumas situações que podem ter envelhecido. Em seu tempo, para os códigos de filmar de então, sua violência era inaudita e perturbadora; hoje a maldade de Lúcio como bandido e da própria polícia parecem suaves encenações dum teatrinho remoto, não chocam, não causam estremecimentos no espectador. Os embates entre as personagens parecem às vezes bastante datados. No entanto, nada disto retira a força de um colorido de época que emana das imagens do filme. Este colorido de seu tempo se apresenta já na variedade das figurinhas carimbadas que compõem o elenco. É como se retornássemos a um ponto de mutação do cinema brasileiro. Rever Reginaldo Farias, que na cena-introito já expõe sua raiva com a arma e um palavrão, e mais o debochado desempenho de Ivan Cândido, as soltas formas de Grande Otelo, e Paulo César Pereio e José Dumont e a natureza bravia de Ana Maria Magalhães e a vadiagem lúbrica de Lady Francisco, é tudo impagável e compensa o que pode ainda haver de opaco que a passagem dos anos trouxe até nós nas sequências da realização.
Proposto como um entretenimento policial ao modo dos anos 70, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia acaba indo um pouco além de si mesmo porque seus assuntos, ainda neste século XXI, são urgentes e intransferíveis. Pensar divertindo-se, eis o que podemos fazer. O bandido recriado por Babenco e Louzeiro e vivido por Reginaldo nada tem que ver com aquele bandido formalmente sujo e em estilhaços estilísticos do cineasta Rogério Sganzerla e do intérprete Paulo Villaça em O bandido da luz vermelha (1968); quase uma década depois, a relação do cinema em busca do público se alterava, e estava mais para Babenco que para Sganzerla, mais para a crônica direta que para os simbolismos formalistas.
(eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br