Lobo Antunes e O Apocalipse do Verbo Interrompido

O autor "é um dos mais inventivos ficcionistas de nosso tempo e certamente o escritor onde o texto da língua portuguesa de nossos dias mais avança". Leia mais...

26/06/2013 23:24 Por Eron Fagundes
Lobo Antunes e O Apocalipse do Verbo Interrompido

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António Lobo Antunes é um dos mais inventivos ficcionistas de nosso tempo e certamente o escritor onde o texto da língua portuguesa de nossos dias mais avança. Sem embargo da constante invenção de todos os seus romances, desde Memória de elefante (1979), é em seus livrões mais recentes que o autor radicaliza um estilo narrativo que herdou do cinema (uma das confessadas sombras da literatura, todavia muito verbal, de Lobo Antunes), o gosto pelo corte e a montagem, que adquirem no mosaico lingüístico destes livros uma estrutura grandiloqüente mas cheia de uma precisão que nasce mesmo de seu barroquismo tão cerebral quanto emotivo e poético. Em Eu hei-de amar uma pedra (2004) os parágrafos e até as palavras são abruptamente interrompidos pelo que vem depois, Lobo Antunes corta, monta, delira, vai desabituando o leitor (ou será necessário uma preparação anterior para esta experiência?) da costumeira narrativa-padrão do romance clássico.

“(pés rígidos, quietos, de enforcado)

Mudavam o telão de fundo

(uma cena de circo, uma praça de toiros, uma floresta com jibóias e zebras não mencionando as camisolas sem pessoa dos gorilas penduradas nos cabides das árvores por um único braço)”

Como em Não entres tão depressa nessa noite escura (2000) e Boa tarde às coisas aqui em baixo (2003), em Eu hei-de amar uma pedra as partes entre parênteses abundam, talvez até mais. São formas de interrupção que realçam o estado quebradiço da memória literária na era da imagem. “Integro a geração pós-gutenberguiana da palavra, aberta aos meios de comunicação de massa e, em conseqüência, à imagem”, disse Lobo Antunes numa antiga entrevista ao escritor gaúcho Juremir Machado da Silva. Podemos ler o romance de Lobo Antunes como um cinema em palavras, como a aplicação duma teoria de montagem cinematográfica à estrutura romanesca. Os pés rígidos surgem no primeiro plano. Muda-se o telão de fundo. Aparece outra imagem, outras imagens que se misturam: um circo, uma praça de touros, uma floresta com jibóias e zebras. Eu hei-de amar uma pedra começa a narrar-se de fato por imagens que o narrador vê: fotografias antigas vão dar os primeiros instrumentos para a montagem mnemônica do protagonista, esta primeira parte se chama “As fotografias” e vai acumulando capítulos cujos títulos são “Primeira fotografia”, “Segunda fotografia” e assim por diante. A fotografia é imagem e colando na memória uma à outra Lobo Antunes remete à arte maior da imagem, a que deu movimento à imagem, o cinema. “Tenho dois anos e estou ao colo da minha mãe: é um retrato de estúdio assinado Photo Royal Lda.” Em Não entres tão depressa a personagem igualmente se lembra: “O meu pai nunca me deixou entrar aqui. Devia sentar-se na cadeira de baloiço e olhar do postigo o jardim lá em baixo, o portão, a rua,  eu pequena a brincar às fadas com a minha irmã no rebordo do lago. Aos domingos abria a gaveta da cómoda, remexia papéis até escutarmos o tilintar da argola, subia as escadas do sótão a procurar a chave no meio das outras chaves.” Mas se Não entres tão depressa faz seu mergulho lírico no passado, Eu hei-de amar uma pedra dá a impressão de contemplar o passado como um eterno presente, a fotografia ao lado da personagem, ambos contracenando, a divisão do tempo narrativo desaparece por este artifício que uma imagem tem de ser sempre presente, desfazer aquela regra do narrado de que tudo o que está sendo narrado (mesmo que utilize o chamado presente histórico) é passado, os aspectos documentais, ao vivo, do romance de hoje que Lobo Antunes edifica à sua maneira.

Feito de fotografias, consultas, visitas e as narrativas finais, Eu hei-de amar uma pedra arma o pedregulho da memória. Sinuoso, quebradiço, astutamente alegórico. “a dizer-lhe na cara que não se tratava de uma onç/ que não se tratava de um leão de cenário.” A palavra “onç” interrompe-se antes da última letra, pula-se para uma imagem inesperada, leão de cenário; um anacoluto, um apanhado da maneira desarticulada do falar cotidiano e também um equivalente do olhar fragmentado que o cinema trouxe para o olhar diário do homem contemporâneo; este processo, “onç”, é literário ou cinematográfico? Demasiado provocativo para ser simplesmente literário, demasiado verbal para ser cinematográfico. Cortar a letra final do nome do felino não é a mesma coisa que picotar planos que mostram na montagem pedaços do corpo de uma onça. “Ver” a ausência do “a” final de “onça” teria alguma relação com a imagem duma onça de onde retiramos uma orelha ou o pescoço, experiências cubistas? Bem, são questões de alguém que hoje lê a literatura com os olhos do (e no) cinema? Alguém influenciado pela leitura de O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil (2007), do ensaísta brasileiro José Carlos Avellar, o livro sobre cinema que eu gostaria de ter escrito? Creio que a leitura de Eu hei-de amar uma pedra (um dos romances que eu gostaria de ter escrito) se complementa nas (e com as) idéias levantadas por Avellar, a idéia de corte e montagem que o cinema passou às letras de hoje (na verdade, um romance, desde Quixote, de Cervantes, sempre foi montagem e corte) encontra um pico adequado em Eu hei-de amar uma pedra, pois Lobo Antunes, ares de psiquiatra que endoidou (pensemos no alienista de Machado de Assis), nunca se satisfaz com a lógica inesperada da seqüência. Experimenta sempre, como o cinema experimental.

Em Boa tarde às coisas assim o narrador começa:

“Não sei se ela disse

—Esta era a casa

ou

(se calhar)

—Há vinte anos

ou

(pode ser, não estou certo)

—Morei aqui.”

Há um processo de construção que o próprio romance expõe, expondo-se. Metalinguagem? Mas nunca um esqueleto morto! Flexiona-se, tem alma este esqueleto de Lobo Antunes. No fim de Não entres tão depressa  aquela frase: “À falta de melhor toco-me com o dedo no vidro.” Eu hei-de amar uma pedra é outra e fundamental interrupção em seu final: “a informar mudei de plano, não preciso de vocês, sou eu que fecho o livro, vão-se embora, acabou-se.” Romance interrompido em seu fluxo descontínuo e eterno, Eu hei-de amar dispensa o leitor. Esta era a casa onde meu dedo foi tocado pelo vidro e depois de muito meditar agastou-se com o leitor e mandou-o embora. A forma libertina das narrativas de Lobo Antunes convida-me a montar um texto com cenas de suas peças literárias. Como o próprio romance Eu hei-de amar uma pedra esta peça crítica não terá fim, não tem muito objetos definidos, pior, não tem nem mesmo fotografias a que se segurar, por isso recorri à metáfora do cinema como suporte literário para edificar estas difusas teorias.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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