O Construtor e Suas Mulheres

O realizador americano Jonathan Demme fez o filme que talvez desejasse fazer ao longo de toda a sua vida, em Solness, o Construtor

29/10/2020 14:12 Por Eron Duarte Fagundes
O Construtor e Suas Mulheres

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O realizador americano Jonathan Demme fez o filme que talvez desejasse fazer ao longo de toda a sua vida, em Solness, o construtor (A master builder; 2014), uma transposição para o cinema das sinuosas ideias que o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen edificou em sua peça homônima de 1892. Como muitos dos diretores de sua geração, hesitantes entre a vocação artística e as necessidades industriais impostas pelos produtores, Demme ficou, em boa parte do tempo, no meio do caminho do que poderia realizar como cinema; o sucesso veio com Totalmente selvagem (1986) e O silêncio dos inocentes (1994), mas quem se interessa pela meditação cinematográfica sabia que estes filmes não traziam tudo o que pretendiam, embora nunca se soubesse como seria esse tudo; um de seus trabalhos que parecia aproximar-se do escopo de Demme, caso não estivesse tão incrustado na busca do grande público, foi o documentário Neil Young, heart of gold (2006), uma força estética quase isolada em sua filmografia.

Demme faleceu em 2017, aos 73 anos. Solness, o construtor foi seu penúltimo filme. E nunca Demme foi tão rigoroso numa narrativa cinematográfica. Com roteiro de Wallace Shawn, que também interpreta o papel central, o filme de Demme utiliza rostos característicos, desglamurizados e expressivos que se põem bastante à distância das formas interpretativas costumeiras no cinema, especialmente no cinema americano dos grandes circuitos; agindo com esta  estética de sombrios muito própria, Demme abre sua narrativa para as nuanças elaboradas e muitas vezes secretas do universo simbólico construído no século retrasado por Ibsen. Como sua personagem, um homem que  edifica prédios, Demme se materializa em imagens à maneira dum construtor cinematográfico: nada escapa ao detalhismo frio e despojado de sua câmara e à precisão de sua marcação com os intérpretes.

Dentro da cena, o construtor vivido por Shawn com sua invenção de expressões únicas é acossado por suas mulheres. Sua esposa circunspecta, muitas vezes em silêncios e poucas e cruas palavras. A empregada. A jovem que o vem visitar. Todas amorosas, com todas estas figuras femininas a personagem do construtor tem uma relação afetiva, e com cada personagem feminina uma afeição de diferente nuança. O denominador comum entre as afeições é uma aproximação ao feminino marcada pela excentricidade indelével. Nas relações com os homens (o namorado da empregada, o médico), homens que são possíveis rivais, surgem curvas, vaivéns, no fundo monitorados pelas mulheres que se vão interpondo, nas marcações, entre Solness e esses outros indivíduos.

De uma certa maneira, Demme parece querer retomar certas atmosferas enforcadas, concentradas, teatralizadas de dois filmes feitos nos Estados Unidos pelo francês Louis Malle: Meu jantar com André (1981) e Tio Vanya em Nova Iorque (1994). São dois Malles pouco vistos, geralmente pouco referidos em sua filmografia, mergulhados numa obscuridade histórica que parece às vezes deformada e preconceituosa. Sente-se, com o palpitar da visão do filme de Demme, que os aspectos de rigor formal e de cenário concentrado e exigência para com o ator parecem ser ressuscitados e ampliados por Demme em seu filme. A dedicatória de Solness, o construtor a Malle nos créditos finais ilumina esta identificação estilística entre filmes separados por largos anos e, de qualquer forma, por uma visão de mundo e de cinema algo diferente entre Malle e Demme. Em Meu jantar com André Wallace Shawn interpreta um ator-escritor às voltas com discussões sobre a encenação, com um diretor de teatro vivido por Andre Gregory, este mesmo que no filme de Demme interpreta o médico; Meu jantar com André constrói sua ficção em cima dos dados de seus intérpretes Wallace e Andre; a conversação se passa durante um jantar. (Wallace, lembremos, é intérprete e roteirista de Solness, o construtor). Em Tio Vanya em Nova Iorque (1994) Malle filma a encenação teatral da peça do russo Anton Tchekov; pouco a pouco o cineasta francês converte o teatro em sua própria visão cinematográfica do universo de Tchekov; o diretor da peça dentro do filme de Malle é ainda Andre Gregory, um dos polos de Meu jantar com André e o velho médico de Solness, o construtor. Todos estes entrelaçamentos acusam a nobre e inspirada origem do filme de Demme, além dos recursos reflexivos e verbais trazidos de Ibsen.

Tributo admirável de Demme, Shawn e Gregory a um homem que os deve ter marcado ao longo de sua vida na América, o francês Louis Malle, Solness, o construtor se plasma como uma sóbria construção fílmica que talvez seja um caso único, em sua torre, dentro do cinema de Demme ou fora deste cinema.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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