Como Se as Mulheres Lhe Dirigissem o Filme

O norte-americano George Cukor ficou bastante conhecido como um diretor de mulheres

03/10/2021 03:15 Por Eron Duarte Fagundes
Como Se as Mulheres Lhe Dirigissem o Filme

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O norte-americano George Cukor ficou bastante conhecido como um diretor de mulheres, assim como o francês François Truffaut era alcunhado de o diretor de crianças. São habilidades específicas, uma espécie de departamento da direção de atores; estas habilidades exigem conhecimentos empíricos próprios: como lidar com as mulheres ou com as crianças (em suas características escorregadias) para transformá-las em personagens de cinema?

Um dos trabalhos marcantes responsáveis por esta fama é justamente As mulheres (The women; 1939), que desde seu título anuncia o interesse de Cukor pela alma feminina. É bem verdade: o italiano Michelangelo Antonioni filmou o vazio da mulher burguesa europeia e o sueco Ingmar Bergman observou o inferno interior de algumas mulheres de seu país; numa cidade das mulheres o italiano Federico Fellini mergulhou em seus delírios barrocos e debochadamente machistas. Cukor faz outra coisa: atrás da câmara, age como uma mulher, sua câmara é um fuxico refinado, como um frufru de vozes femininas; imagino que Cukor, dirigindo suas atrizes, desse a elas a impressão de que estivessem dirigindo o filme. É o que passa especialmente este As mulheres ao espectador: as fofocas e as banalidades correm soltas, como se tivessem sido escritas por uma mulher de pena desenfreada; certamente o que diferencia As mulheres das aparências descalibradas de seu roteiro é a extremada sensibilidade da direção de Cukor, que, soltando suas mulheres e dando-lhes uma impressão de liberdade e improvisação absoluta, as coordena por um estilo de filmar refinado e tão preciso quanto pode ser uma tábua construída no mundo de fantasias livres de Hollywood.

Em As mulheres só vemos mulheres na imagem. Os homens são citações no diálogo. O nervo da trama é o desmoronamento do casamento de Marie e Stephen Haines; Stephen é somente um nome referido em conversações dela com as amigas ou uma voz (que não aparece: é somente simulada) ao telefone. O que bate fortemente na imagem são os dilemas de Marie, o caso de seu marido com uma empregada de perfumaria (uma arrivista matrimonial que pescou Stephen), Crystal Allen, um divórcio inesperado e indesejado, a filha do casal divorciante à beira da adolescência, as murmurações com a mãe de Marie sobre os tempos em que não havia divórcio e as mulheres fingiam não ver os deslizes dos homens, as trêfegas falações de Sylvia Fowler no salão de beleza, o encontro de várias divorciadas num lugarejo em Reno. Cukor entrega seu filme às mulheres. É um retrato de mulheres tão bom quanto aquele de Antonioni em As amigas (1955), mas diferentemente: a metafísica do italiano é substituída pela leveza hollywoodiana, um feminino necessariamente superficial mas igualmente sutil e autêntico.

Cukor se entrega às mulheres com quem trabalha e em dado sentido parece entregar-lhes seu próprio cinema: ou seu próprio ímpeto de fazer cinema. Conta-se que Cukor começou a preparar a encenação de E o vento levou (1939) e que foi o astro Clark Gable quem sugeriu o afastamento do diretor, que seria substituído por Victor Fleming; o motivo seria que Cukor estaria dando atenção excessiva às atrizes, desleixando no trabalho dos atores. Era da natureza do cineasta: voltar-se para suas atrizes. Imagina-se que o mítico filme de Fleming seria outro nas mãos de Cukor. Esta natureza do diretor perseguiu-o até seu derradeiro filme, quando dirigiu a inglesa Jacqueline Bisset (que produziu o filme) e a americana Candice Bergen em Ricas e famosas (1981).

O roteiro de As mulheres partiu duma peça homônima de Claire Boothe Luce. Foi escrito por Anita Loos, Jane Murtin e também teve pitadas do romancista americano F. Scott Fitzgerald (que teria rejeitado seu nome nos créditos, pois, sendo um escritor sério, temia ser associado com um projeto inicialmente novelesco e comercial – se o cinema ainda hoje é vítima de preconceito intelectual, imagine-se em 1939).

As mulheres é do tempo do preto-e-branco, sim, mas há uma cena de cerca de dez minutos, a cores, em que se encena, num palco de teatro minúsculo da época, um desfile de modas, com figurinos e tipos preciosos. Outro dado da estilização de filmar de As mulheres é o valer-se de espelhos em algumas sequências; e estes espelhos que multiplicam imagens são tão bons quanto aqueles do americano Orson Welles em A dama de Shangai (1946) e do alemão Rainer Werner Fassbinder em Effi Briest (1974), embora ainda aí o experimentalismo visual de Welles e o peso germânico de Fassbinder se distanciem muito das frugalidades sofisticadas de Hollywood.

Cabe também evocar a forma em ondas como Cukor se vale dos cenários, seja uma mansão de ricos, quer um salão de beleza, ou um palco teatral, ainda uma loja de perfumes. Não tem a agressividade formal de Antonioni. Ou os rudes modos do italiano Roberto Rossellini em sua ética-estética neorrealista. É algo flutuante: como o coração das mulheres que existem no universo cinematográfico de Cukor.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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