Polanski, a Moral e a Sociedade Conveniente

O polones Roman Polanski voltou a praça com um de seus mais belos e afiados filmes, O Oficial e o Espiao

23/12/2020 14:14 Por Eron Duarte Fagundes
Polanski, a Moral e a Sociedade Conveniente

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O polonês Roman Polanski voltou à praça com um de seus mais belos e afiados filmes. O oficial e o espião (J’accuse; 2019) apareceu nos cinemas do mundo no começo de março, entre dois fatos perigosos para a carreira do filme. Acusado de estupro por várias mulheres (desde o famoso caso nos anos 70, do qual saiu a condenação que o impede de pisar nos Estados Unidos, embora a vítima, que tinha treze anos na época do crime, tenha dito, já em idade bastante madura, que fazia tempo perdoara ao cineasta), Polanski é alvo dos movimentos contra os abusos sexuais perpetrados em mulheres; no começo de março havia o Dia Internacional da Mulher, também se dava o avanço pandêmico internacional do coronavírus. Assim, o filme de Polanski, maldito em sua origem por ser realizado por um homem olhado com ódio por muitos (ódio até justificável, porque ele era um quarentão quando se valeu duma garotinha no introito dos instintos imaturos), desapareceu logo das salas, centro de aglomerações que agora amedrontam os paranoicos (todos nós) dos contágios. Ao que parece, seu tema explosivo —o caso Dreyfus, na França do fim do século XIX, como uma candente reflexão sobre a busca da verdade enfrentando a construção mentirosa e preconceituosa duma verdade de classe— parece amaldiçoado em sua origem. Dreyfus foi condenado sem provas, indisfarçadamente por ser judeu; o militar Georges Picquart, cioso de verdade, ainda que ele próprio, Picquart, tivesse um pé atrás com judeus, enfrentou os poderosos do Exército Francês para não permitir que mentiras armadas passassem em brancas nuvens; o escritor Émile Zola comprou a briga na imprensa num texto hoje clássico; Dreyfus ficou longo tempo preso, Picquart e Zola também acabaram amargando um tempo no cárcere, até que a verdade ressurgisse.

O oficial e o espião, extraído dum livro de Robert Harris, tem uma extraordinária reconstituição de época e caracteres psicológicos do militarismo francês (há uma cena dum Museu do Louvre, em seu interior de época, feita com raro tato cinematográfico; e os aspectos rígidos dos indivíduos militares são captados em seu enrijecimento por algo do hieratismo distanciado das interpretações); Polanski usa de toda a sua habilidade para construir uma narrativa plástica densa e de extrema sensibilidade. O texto de Zola, com suas ardentes acusações contra a sociedade estabelecida representada pelo aparato militar, é um clímax emocional no filme; as composições dos atores como Jean Dujardin na pele de Picquart, Louis Garrel como um esquivo e paracomposto Dreyfus e também Emmanuelle Seigner, esposa de Polanski, como a mulher casada com quem Picquart se envolve nas sombras têm a marca da precisa direção de atores do cineasta.

O oficial e o espião vai mostrar a força da indignação na rebeldia de Picquart e Zola ao perceberem o escândalo dos poderosos. No entanto, na sequência final, Picquart, como ministro, ao receber o pedido de Dreyfus para reparar uma injustiça nas promoções militares (especialmente comparando com a forma como se procedeu para com Picquart), recua, deixando-se levar pelo medo e, talvez, por seu próprio preconceito, um antissemitismo velado. Os arcaísmos e a xenofobia étnica na França são expostos em vários momentos ao filmar revoltas populares parafascistas contra Dreyfus e seus defensores; mas o ponto confluente e atroz da exposição de Polanski para estes dados de exacerbação reacionária das populações são as imagens em que, furibundos, os indivíduos fazem uma fogueira com textos de Zola, seus livros e as páginas denunciantes nos jornais.

De certa maneira, O oficial e o espião se liga ao momento da vida de Polanski. E ao momento da vida no planeta. A turbulência na busca da verdade: da qual nunca é fácil aproximar-se.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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