O Fim da Doce Vida

Fellini, mais Fellini do que nunca em A Doce Vida. Sua visao moral da sociedade contemporanea esta inteira em cada fotograma

03/06/2025 03:05 Por Eron Duarte Fagundes
O Fim da Doce Vida

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Com As noites de Cabiria (1957) o cineasta italiano Federico Fellini encerrava a fase neorrealista de sua obra, em que sua forma cinematográfica, conquanto muito pessoal e barroca, era mais natural, as personagens nem tão vertiginosas e sua visão da sociedade determinada por um estilo pequeno-burguês de filmar que só é salvo pela grandeza de realizador de filme. Será em A doce vida (La dolce vita; 1960) que o diretor começa a transformar seu neorrealismo (na esquisita e libertina entrevista coletiva que a personagem da estrela de cinema Sylvia dá, recebe, entre os petardos à queima-roupa jogados pelos repórteres e a que muitas vezes ela não responde, a seguinte pergunta: “O neorrealismo está morto?”); curiosamente Fellini projetara inicialmente sua devastação do universo romano com o título de Moraldo na cidade, o que encaminharia o filme para uma continuação de Os boas-vidas (1953), passado entre adolescentes de interior e que se conclui com a partida do protagonista para a grande cidade. Assim como está, A doce vida guarda resquícios de suas origens: o jornalista e escritor Marcelo Rubini é, como tantos outros, da literatura ao cinema, passando pela própria vida (quem dentre nós não é, de alguma maneira, um homem do interior?), um homem de província deslumbrado com o grande centro, a Roma do final dos anos 50.

Quem quiser assistir a quaisquer das realizações da primeira fase de Fellini e depois der com A doce vida pode bem observar as metamorfoses narrativas inseridas. A personagem da prostituta Cabiria, que conduz a ação por As noites de Cabiria, não tem a grandiloquência da criatura de Marcelo, o protagonista por cujos olhos melancólicos vemos a decadência ocidental numa noite romana em A doce vida. O barroquismo da imagem felliniana acentua-se, quer na imponência do tratamento visual, quer na estridência dos ruídos que se espalham pelo filme; o que em As noites de Cabiria era mais um retrato de personagem que permitia algumas referências sociais, em A doce vida transforma-se num painel multiforme, tentacular, que de certa maneira se repetiria, renovando-se, em muitos outros trabalhos do realizador, o que evidencia a característica revolucionária criada a partir dali.

Fellini é mais Fellini do que nunca em A doce vida. Sua visão moral da sociedade contemporânea está inteira em cada fotograma. Como bom italiano, Fellini mistura a religiosidade com sua blasfêmia correspondente em seu filme; a abertura da obra dá-se sob o signo da estátua de Cristo pendurada de um helicóptero que sobrevoa a “cidade eterna”, há uma sequência de sessão espírita que parece antecipar aquilo que Fellini radicalizaria em suas fantasias de Julieta dos espíritos (1965), porém surgem também muitas orgias e provocações (premonição do que ocorreria no mundo a partir dos anos 60— a personagem de um homossexual assumido diz nas cenas finais que em 1965 “o mundo será uma depravação total”) e até um strip-tease da atriz Nadia Gray filmado com a engenhosidade de um baile-imagem que às vezes o cinema de Fellini adquire em êxtase (Amarcord, por exemplo, outra obra-prima musicada por Nino Rota).

Se até o momento do encontro de Marcelo com seu pai —um encontro que passa do eufórico ao melancólico diante do mal-estar do velho no quarto com uma garota—, A doce vida parece conter um clima “pipocante” de um documentário, depois a emoção adensa-se, fecha-se a tragédia moderna, o trem descarrila; com o homicídio de crianças seguido de suicídio cometido pelo filósofo Steiner (pai das crianças a quem mata antes de matar-se), amigo mais velho de Marcelo, o absurdo duma sociedade construída nas bases daquela que está sendo retratada acelera-se e mergulha a eterna madrugada felliniana em seu autoasco. A gratuidade de algumas orgias, como aquela em que Marcelo cobre com penas de travesseiro uma das mulheres noturnas e rotundas do filme, vão desajustando os últimos laivos de linearidade da narrativa; o que remete ao mais gratuito de seus arroubos visuais, o para sempre maldito A cidade das mulheres (1980), igualmente interpretado por Marcello Mastroianni, agora a anos-luz da segurança neorrealista.

Diz-se que Michelangelo Antonioni é o cineasta da incomunicabilidade. Federico Fellini, à sua maneira, trata da incomunicabilidade. No início do filme, ao enxergarem o helicóptero com Cristo pendurado, algumas garotas que tomam sol num terraço, tentam em vão comunicar-se com os ocupantes do helicóptero, entre eles Marcelo; o som do motor abafa-lhes a voz. Na cena que fecha a narrativa, uma garota do outro lado da margem tenta dizer algo a Marcelo, que, após insistências, desiste de entendê-la, pois o som das vagas corta-lhe as palavras; o filme encerrar-se-á com a imagem angelical, loura, um sorridente primeiro plano da garota. Em sentido amplo, A doce vida trata da falta de comunicação entre os seres humanos numa sociedade em que representar um papel é mais importante que tudo; cultuando seu próprio brilho de espetáculo, Fellini critica a sociedade do espetáculo, isto é, da aparência do brilho fútil, assim como ocorreria, em grau menor, em Ginger e Fred (1985). O dilema de Marcelo, jornalista e escritor, é o dilema do homem da segunda metade do século XX: fazer concessões à bobagem e ser um sucesso, ou resistir e entregar-se à sua vocação, desafiando o tempo. Profético em muitos pontos, A doce vida antecipou todas as transformações sociais e culturais ocorridas dos anos 60 em diante e, diante do episódio da princesa Diana, a modernidade da ação desumana dos paparazzi (palavra originária da personagem de Paparazo, o fotógrafo que trabalha com Marcelo no filme de Fellini) se torna irônica e cruel diante da visão da fita. Pode-se dizer que um realizador muito prestigiado, o norte-americano Woody Allen, presta evidente homenagem ao clássico de Fellini em Celebridades (1998): o comportamento de vedete do astro autovivido por Leonardo di Caprio em Allen é extraído, entre outras coisas, do vedetismo de Anita Ekberg, que em A doce vida autointerpreta uma atriz sueca que chega a Roma para a realização de um filme e cuja presença no filme de Fellini vai culminar na nostálgica cena que envolve Anita e Marcello Mastroianni banhando-se na Fontana di Trevi.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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