O Testamento Lliterario de Moacyr Scliar
Em Eu Vos Abraco, Milhoes Scliar visita a historia do pais no seculo XX
O último romance do falecido escritor gaúcho Moacyr Scliar, Eu vos abraço, milhões (2010), é narrado por um velho a seu neto. “De uma coisa posso me orgulhar, caro neto: poucos chegam, como eu, a uma idade tão avançada, àquela idade que as pessoas costumam chamar de provecta. Mais: poucos mantêm tamanha lucidez.” Lucidez: eis uma característica da ficção de Scliar. E de sua figura humana, bem conhecida dos gaúchos. Durante o mês de janeiro de 2011, Scliar sofreu um AVC enquanto se recuperava (e bem) duma cirurgia intestinal no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. O AVC o jogou num longo coma até o passamento no começo de março. Todos torciam por sua recuperação. Que recuperação seria esta? Caso sobrevivesse, poderíamos estar diante dum Scliar mutilado? Talvez Scliar tenha finalmente morrido para não perder a lucidez.
Eu vos abraço, milhões é um relato, na figura de Valdo, da trajetória da esquerda ao longo do século XX: seu fanatismo, seus erros, sua paixão, seus avanços, suas contradições, suas perplexidades. É uma narrativa agradável de ler, embora se arraste um pouco nesta agradabilidade. Não é tão bom quanto o romance anterior de Scliar, Manual da paixão solitária (2009), mas é igualmente tributário da lucidez e do rigor minuciosos de sua escrita; embora escreva muito, Scliar trata com carinho a palavra, como poucos na literatura brasileira de hoje.
Em Eu vos abraço, milhões Scliar visita a história do país no século XX. E muitas vezes se diverte com isto, misturando criaturas inventadas com seres que de fato existiram em cenas de encontro entre, por exemplo, o escritor Machado de Assis e uma fã que somente existe no romance de Scliar. Divertida é a alusão ao livro Os sertões, de Euclides da Cunha, e também a figura ambígua de Euclides sobressai juntamente com seu texto barroco.
Eu vos abraço, milhões é igualmente uma metáfora do próprio Scliar, um homem generoso com todos os que dele se acercaram. As frases finais do romance parecem um pouco premonitórias: “Como é bonito o Brasil. Como é bom viver. Ai, meu neto. Como é bom viver.” Scliar não deve ter aceitado facilmente deixar esta vida.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br