O Testamento Esttico de Tarkovski
O cineasta russo Andrei Tarkovski criou uma obra de extraordinrios rigor formal e filosfico
O cineasta russo Andrei Tarkovski criou uma obra de extraordinários rigor formal e filosófico. O que nem sempre foi bem compreendido, inclusive por aqueles que tinham a responsabilidade de pensar sobre o cinema; demais o distanciamento do universo humano que retratava, a alma russa, favorecia a incompreensão ocidental. Pouco antes de morrer, Tarkovski lançou suas notas cinematográficas visando a dar alguma luz à forma Tarkovski de fazer cinema: o resultado é o livro Esculpir o tempo (1986), onde o leitor (que foi antes o espectador dos filmes de Tarkovski) topará o miolo da filosofia de cinema de Tarkovski, como se estivesse assistindo a um de seus filmes, porém agora em palavras. Esculpir o tempo tem para a visão da filmografia de Tarkovski a mesma importância que Notas sobre o cinematógrafo (1975) para o cinema do francês Robert Bresson.
“Qual é a essência do trabalho de um diretor?” se pergunta Tarkovski. E aduz: “Poderíamos definir como ‘esculpir o tempo’.” Avesso ao cinema de ação e ao cinema de concessões comerciais, Tarkovski é muitas vezes rabugento na exposição de suas ideias. No entanto, sua preocupação é captar a essência do cinema num “bloco de tempo” capturado é notavelmente produtiva: perceber com a narrativa de cinema o impulso inicial que leva um indivíduo ao cinema; não, como se pensa inicialmente, a diversão ou a alienação, mas a necessidade de preencher o tempo, o tempo que perdemos, o tempo que consumimos, o tempo diante do qual nos desencontramos. Sim: estas notas valem especialmente para o tipo de cinema que Tarkovski faz: porém, com generosidade, podemos estendê-la a qualquer filme feito, mesmo aqueles que não partem desta premissa, pois o cinema nunca pode deixar de ser fragmentos do tempo, o tempo que buscamos. É claro que outras artes também o são, também são narrativas do Tempo: a literatura é a sucessão de palavras no Tempo, a música a acumulação de sons no Tempo. Mas nenhuma tem esta força material —ou materialidade— de esculpir o tempo, agir com a imagem-tempo como o escultor trata o mármore que lhe dará a obra de arte.
As teorias de Tarkovski podem levar-me a outro realizador, o alemão Alexander Kluge, talvez o que mais revolucionou o tempo no cinema (mais que os franceses Alai Resnais e Jean-Luc Godard). Mas aí já é outro capítulo crítico.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br