A Cabeca por Tras das Palavras
Em O centauro no jardim temos alguns dos mais brilhantes momentos da prosa de Scliar
“Parece final de novela de TV, diz a moça. E tem razão: é uma história tão engenhosamente montada quanto uma novela de TV. Com um único objetivo: me convencer de que eu nunca fui um centauro. O que estão conseguindo. Em parte, pelo menos. Ainda me vejo como um centauro, mas um centauro cada vez menor, um centauro miniatura, um microcentauro. E mesmo esta travessa criaturinha me foge, quer galopar não sei para onde. Talvez seja o caso de deixá-lo partir, de aceitar esta realidade que eles querem me impor: que sou um ser humano, que não existem os seres mitológicos que marcaram minha vida, nem os centauros, nem a esfinge, nem o cavalo alado.”
O parágrafo acima dá início ao último movimento do romance O centauro no jardim (1980), um dos clássicos da literatura de Moacyr Scliar e que certa vez foi referido por uma associação de críticos internacionais como um dos duzentos mais importantes livros de ficção de temática judaica da história da literatura; é isto mesmo? As observações do narrador que estão reproduzidas na abertura deste comentário surgem depois que Tita, a mulher-centaura do protagonista-centauro, dá sua visão de toda a trama do romance diante duma ouvinte que é um pouco uma substituta do leitor; na versão de Tita, as metáforas e os mitos dão lugar a um certo realismo que luta com uma irrealidade tensa que não deixa de insinuar-se. O leitor revê toda a trama, em novas palavras, em novas roupagens, e Scliar vence com brilho o desafio de evitar o tédio e a repetição: sua sutil metalinguagem triunfa. Como no tcheco Franz Kafka, um de seus confessados mestres, na prosa de Scliar há uma revolução interna da frase que espanta pela maneira extremamente simples de que se vale o autor para chegar a resultados tão intensos; falo em Kafka por mania de leitor, mas quero lembrar que Scliar é muito pessoal, suas travessuras formais e temáticas passam à distância do pesado tom sombrio-europeu do romancista dO castelo (1922).
No parágrafo que encima minhas reflexões aqui Scliar alude à mirabolante história como um exercício de engenhosidade que teria similitude com uma trama de novela televisiva. Há alguns anos se leu por aqui que os direitos de filmagem de O centauro no jardim foram negociados com um estúdio de Hollywood: o próprio Scliar dizia, em entrevistas, que aquilo que poderia interessar aos executivos cinematográficos americanos em sua história não deveria render um filme sério; ou seja, não cria no projeto como algo mais do que estes divertimentos industriais à semelhança dos dinossauros de Steven Spielberg. Sim: a trama básica do romance pode ser acompanhada com sofreguidão acrítica pelo leitor superficial em busca de fatos diferentes; pode ser um jogo de telenovela; pode erigir-se numa fantasia de cinema ianque. Mas o que faz a diferença no romance O centauro no jardim é a cabeça por trás das palavras: os signos-chave que se escondem por trás de um jeito de se expor verbalmente; a sintaxe despojada não impede a intensidade dos significados metafóricos.
Se Juremir Machado da Silva atingiu o mais alto ponto do barroquismo gaúcho em livros como Cai a noite sobre Palomas (1995) e Fronteiras (1999), e Lya Luft sempre nos surpreendeu com sua deslumbrada psicologia, de que Histórias do tempo (2000) é um bom exemplo, Moacyr Scliar mostra o poder duma simplicidade trabalhada. Ao transformar o centauro em companheiro de seu leitor, Scliar logra o prodígio de inserir no cotidiano a invenção— sem pudores.
Scliar é um escritor admirável certamente. Se algumas de suas últimas obras, como A colina dos suspiros (1999) e Os leopardos de Kafka (2000) são efetivamente menores, não podemos esquecer que sua pena generosa doou à literatura gaúcha textos de fato grandes como os romances A estranha nação de Rafael Mendes (1983) e Cenas da vida minúscula (1991), ou um conto exemplar como Os contistas (1995).
Em O centauro no jardim temos alguns dos mais brilhantes momentos da prosa de Scliar. O encontro do homem-centauro com a leoa-mulher Lolah numa clínica do Marrocos é um destes achados exuberantes que dão tudo o que se precisa sentir sobre a natureza obscura dos seres sobre a Terra.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br