Sonhos e Frustracoes Brasileiros no Universo de Scliar

Scliar adota, em O Exercito de um Homem So, o rigor formal de seu texto, com precisao e brilho

05/11/2023 13:27 Por Eron Duarte Fagundes
Sonhos e Frustracoes Brasileiros no Universo de Scliar

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O Capitão Birobidjan é uma das criações mais estimadas do ficcionista Moacyr Scliar. Ele é que conduz o universo de sonho e frustrações brasileiras ao longo do romance O exército de um homem só (1973). Estes sonhos e frustrações são na verdade sonhos e frustrações que, com algumas diferenças de local para local, do homem do século XX no mundo todo. Capitão Birobidjan, que é o codinome de Mayer Guinzburg, é um sonhador, o sonhador dos sonhos socialistas, um novo mundo, o mundo justo; o narrador de Scliar diverte-se com as ingenuidades de sua personagem, com seu lado estereotipado, mantém-se nas superfícies do humor cáustico, bem ao gosto do escritor. Birobidjan mora em Porto Alegre, no sul do Brasil, no sul do mundo; daqui pretende comandar uma parte da revolução. Um Quixote brasileiro? Lembra certas coisas de Policarpo Quaresma, o patriota do triste fim em Lima Barreto, e outras coisas de Simão Bacamarte, o alienista de Machado de Assis, alienista de fim talvez triste. O fim de Birobidjan é triste? É feito com os enigmas de seu tempo, desconhecidos de Policarpo e Simão; e há, em sua trajetória, um mergulho nos aspectos fantásticos, e até fantasmagóricos, que somente a literatura (e a realidade) latino-americana no século XX pôde permitir.

Scliar adota, em O exército de um homem só, o rigor formal de seu texto, com precisão e brilho. Um tipo de rigor formal que, diante dos caminhos atuais da literatura brasileira, cheia de outros estímulos que autores como Scliar mal vislumbravam, parece aqui e ali atravessado por um tempo passado, ou sepultado, com sua sintaxe e em alguns modos da frase; no entanto, é na naturalidade de escrever de Scliar que a narrativa topa uma respiração sempre atual, talvez que em seu tema dos sonhos libertários frustrados —o do fracasso das revoluções no século XX—, por mais contemporâneo que este assunto ainda possa ser, ainda que de outra forma, modelo século XXI.

Numa fase mais sarcástica e cínica do olhar do artista para o mundo, Scliar não vê suas personagens com a identidade que delas se acercava Erico Verissimo em Olhai os lírios do campo (1938). De uma certa pieguice narrativa em décadas nossa literatura vai ao distanciamento: Birobidjan, apesar dos símbolos fantasmagóricos, tem quase o ar de um registro documental no texto de Scliar. Muitos anos depois de Erico e de Scliar, em O inventor da eternidade (2022), Liberato Vieira da Cunha dá outra guinada: uma aproximação distanciada às personagens pela natureza poética da linguagem, o que algo é bem diverso da prosa de Scliar e do classicismo de Erico.

“Vacila, apoia-se no sofá. As luzes se acendem. É para frente que o Capitão cai. Mergulha no mar escuro.” Birobidjan viveu, amou, sonhou, morreu: como todas as pessoas e todas as personagens, estas, mesmo que não tenham a morte descrita, morrem nas páginas, após a leitura, sobrevivem na memória do leitor, que cria e recria o universo literário.

Um dos muitos achados de O exército de um homem só são as notas de pé de página, que na verdade fazem parte da narrativa (como estrutura e tema) e devem ser lidas. Estas notas são inserções irônicas. Algumas ferozes em sua mordacidade. Como a última nota em que um sobrinho cardiologista do Capitão questiona a dor que fulminou a personagem central. “A dor arremete*. Penetra-lhe no peito, expande-se poderosamente.” Na nota: “Que tipo de dor era esta. Era constante ou se interrompia? — perguntou um sobrinho de Birobidjan, cardiologista, ao saber do livro sobre o tio.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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