Godot Nao Significa Nada
Esperando Godot vai asfixiando o espectador numa rede de complexas incongruencias entre momentos de riso grotesco e truncado
Esperando Godot (no original francês em que o texto foi escrito “En attendant Godot”; 1956) é o centro do universo teatral do irlandês Samuel Beckett e um dos centros do teatro do século XX, talvez o centro mais revolucionário deste teatro de cotidianos gestos absurdos, não-significantes de uma certa ficção característica de nossa época. O texto está cheio de trivialidades, diálogos onde pontuam os lugares-comuns que deixam de ser lugares-comuns; a metafísica de Esperando Godot é niilista e abdica de qualquer transcendência, chafurdando como camundongo no chão de suas palavras. Esta é técnica insuperável de Beckett: revolucionar o banal por seu dom de articulador dos vocábulos de todo o dia. Beckett está mais para o tcheco Franz Kafka do que para o irlandês James Joyce, embora adote os tons duros de expressar-se deste seu patrício.
Interpreta-se Godot de várias maneiras, mas a peça melancolicamente “inócua” de Beckett torna vazia qualquer interpretação. Beckett chega a fazer uma grande literatura afastando-se do especificamente literário.
(Esta acima a leitura do texto de Beckett feita nos dias de hoje).
A seguir, o texto que escrevi em 1982, quando vi uma encenação feita da obra de Beckett, em Porto Alegre.
Esta fusão aqui de coisas díspares de minhas vivências, cruzando tempos e maneiras de ler e ver que parecem distantes muitas vezes, tenta simular uma encenação absurda em palavras. Como em Beckett.
A FUTILIDADE DO HOMEM CONTEMPORÂNEO
A II FEIRA DE TEATRO, realizada no Teatro de Câmara, proporcionou-me o conhecimento de uma das mais obras-primas da dramaturgia no século XX, Esperando Godot (En attendant Godot), que Samuel Beckett escreveu em 1952. Irlandês como James Joyce, Beckett é igualmente austero, rigoroso e dotado dum pudor moral muito britânico que nem a irreverência de muitas colocações consegue ocultar; como Joyce, Beckett é fascinado por todo gesto humano, unindo o trivial ao barroco, com interlúdios poéticos, fusão de que ele retira o grotesco surrealista da natureza humana.
Esperando Godot é uma obra radical, revolucionária, onde doses do difícil humor irlandês se mesclam com o clima de desesperançada tragédia, num cenário árido e vazio onde o que se vê no palco, além dos atormentados personagens, é uma descopada e hibernal árvore, à sombra da qual Gogo (o inquieto existencial) e Didi (o magro poético), protagonistas da parábola, esperam Godot, o ilustre cavalheiro cuja chegada é sempre adiada para o dia seguinte.
Desde o grito no escuro de Gogo, que se vê às voltas com um sapato que o machuca, até o final de 2º ato (e da peça), quando Gogo e Didi partem depois de mais um dia de espera inútil (o semblante final dos personagens, fitando o vazio, é inesquecível), Esperando Godot vai asfixiando o espectador numa rede de complexas incongruências entre momentos de riso grotesco e truncado. Beckett constrói um drama, para refletir sobre a condição humana, em que a estrutura é livre, libertina, e o ritmo se vai formando unicamente graças à inusitada criatividade do dramaturgo.
Aos personagens centrais juntam-se outras figuras não menos estranhas, nas quais Beckett insere sua investigação original sobre a repressão e o enclausuramento. Posot e seu porco Luque passam no primeiro dia de espera pelo local, e chama a atenção de Gogo e Didi que um homem seja tratado como porco; as relações entre opressor e oprimido não são maniqueístas em Beckett, e até as pessoas que se divertem (Gogo e Didi) com o estado de marionete de Luque são colocadas como vítimas da tragédia do relacionamento humano. Será Luque que, com seu masoquismo, faz sofrer a alma dos outros?
A impossibilidade do convívio e a inutilidade da passagem do tempo (no segundo dia, Posot está cego e Luque surdo) são os dois temas básicos de Esperando Godot, uma acurada trama de símbolos a que a encenação de Cláudio Cruz e as interpretações de Paulo Conte, Luís Emílio, Caco Batista, João Batista e Rosa Marques (esta como o garoto-mensageiro do esperado Godot) correspondem exatamente.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br