Uma Visita A Veneza
Almas perdidas eh praticamente ignorado. De longe, o mais elaborado trabalho de Risi
Pode-se dizer que alguns casos evidenciam, de maneira muito transparente, a miopia dos historiadores de cinema (e isto vale também para a pintura, a literatura ou qualquer outra arte — a ignorância está sempre presente). Almas perdidas (Anima persa; 1977) foi visto em Porto Alegre, na temporada de 1979, em antigas sessões do cinema Bristol, umas das salas de exibição de arte e ensaio da província. Seu diretor, Dino Risi (1916-2008), é considerado um dos mais bem sucedidos diretores de comédia do cinema italiano; ele não é um autor de que os estudiosos se esqueceram; mas nos estudos do cinema de Risi, Almas perdidas é praticamente ignorado. E é, de longe, seu mais elaborado trabalho; os outros bons filmes que ele fez (Aquele que sabe viver 1962; Sexo louco, 1973; Perfume de mulher, 1974) se situam anos-luz abaixo deste perverso conto gótico que Risi encenou com o histrionismo demente de Vittorio Gassman, a impassível presença cênica de Catherine Deneuve e os contrapontos jovens de Danilo Mattei e também nas aparições de Anicée Alvina, em determinado momento nua como uma modelo dum pintor arcaico e decadente.
Almas perdidas é o filme denso de Risi, um habitual encenador de comicidade à italiana mais acessível ao público. Extraído dum livro de Giovanni Arpino e roteirizado pelo diretor e por Bernardino Zapponi, Almas perdidas usa tanto os belos mistérios duma Veneza cortada por águas e o casarão obscuro dos aristocratas tios do jovem provinciano que chega à cidade grande para estudar pintura como personagens fundamentais em sua estética, quanto Tino (o sobrinho) e seus tios Fabio e Elisa ou a fauna de criaturas que a câmara de Risi surpreende em alguns cenários permitindo a estes seres secundários a estranheza da imagem, sem falas ou alguma ação dramática na história; todos estes acúmulos de estética narrativa (a cidade cortada por águas, o casarão na cidade, as criaturas que habitam ou o casarão ou a cidade) são personagens do filme de Risi, pois, em estratos equivalentes.
Em sua inocência intelectual e emotiva, Tino vai descobrir, na penúltima sequência, uma parte do mistério das almas de seus tios. São seres infantilizados: a despeito de adultos. Uma cena em que as personagens singram um rio dentro da cidade e espiam o prédio dum manicômio e depois os loucos em seus delírios na cerca antecipa esta encenação, a portas fechadas e obscuras, dentro do casarão, da demência de Fabio e Elisa. Na cena final, Tino está indo embora, pelo rio, para deixar as loucuras venezianas para trás. Lucia, a modelo por quem ele se interessara na passagem pela cidade, se despede dele do alto da ponte, mas o reencontro parecerá impossível: ela também faz parte duma Veneza à deriva da qual, no plano de fechamento do filme, Tino quer afastar-se.
Veneza como mistério também foi utilizada por Paul Schrader em Uma estranha passagem em Veneza (1990). Mas há uma grande distância entre o impressionismo de que se vale Schrader e os subterrâneos surrealistas do filme de Risi.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br