O Cinema Brasileiro no Porao
A casa das tentacoes traz os anos 70 ate nos
O terceiro filme de Rubem Biáfora, A casa das tentações (1975), foi seu testamento. Ele fez um filme nos anos 50: o artificioso e estático Ravina (1958). Fez mais um na década de 60: o desglamurizado, realista e com um surpreendente equilíbrio formal O quarto (1968). Os aspectos marginais de seu cinema, à sombra de sua cultura de crítico cinematográfico, se exacerbam em sua terceira realização: A casa das tentações é um experimentalismo intelectual à deriva; Biáfora desce das redações para os porões do cinema brasileiro, banha-se um pouco no marginalismo social e sexual da Boca do Lixo mas mantém seu cerebralismo de ensaísta. Biáfora ainda viveria as difíceis (para o cinema brasileiro) décadas de 80 e (parte da) 90: mas não fez seu filme a cada década, não sei se por desistência dele mesmo ou porque, após as obscuridades de linguagem de seu filme dos anos 70, não encontrasse mais quem financiasse seus projetos fílmicos, sempre arriscados e alucinados; A casa das tentações tardou três anos para sair das prateleiras para algumas salas de cinema em busca de seus problemáticos espectadores. Ao comentar o filme de Biáfora em seu lançamento em Porto Alegre, o crítico gaúcho Tuio Becker anotou em seu texto: “Realizador ‘temporão’, espera-se para daqui mais uns cinco anos, um novo filme de Biáfora, à la mode com os gostos críticos da época.” Tuio esperava: mas tal novo filme de Biáfora não aconteceu; Biáfora morreu em 1996, não faria mais filmes depois de A casa das tentações.
Revisto tantos anos depois, A casa das tentações exibe suas ambições e ousadias ao mesmo tempo em que deixa claras suas experimentações que se racham, se desestruturam, incapazes de conquistar até mesmo o espectador que se interessa por suas excentricidades e referências. Talvez algumas sequências ainda possam sobreviver bem hoje em dia. Um pouco as danças da bailarina Marilena Ansaldi como a personagem que faz testes para ser aceita no cabaré que está sendo montado no obscuro bairro paulistano (em certo momento alguém cita a Rua do Triunfo, 62, é por ali que fica a sede da Boca do Lixo, onde as pornochanchadas dos 60 e dos 70 foram feitas). Mas o momento mais elétrico e forte é o do cenografista doido (Paulo Hesse) que vai dar seus palpites para a montagem daquele subterrâneo e suburbano bordel. É pena somente que as costuras de cenas não são capazes de criar um ritmo (ainda que feito de pura hipnose) que justifique a narrativa de Biáfora como um filme que possa atingir o espectador.
Como bom homem culto do cinema (lembrando: ele é um crítico de cinema), Biáfora sabe citar. Na imagem inicial a câmara aproxima-se duma placa onde se lê: “é proibida a entrada de pessoas estranhas.” É alusão à imagem inicial de Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Na última imagem o movimento da câmara para a placa se repete. O dizer da placa é irônico, pois, sendo proibida a entrada de criaturas estranhas, é de seres estranhos que se povoam as imagens do filme, extremamente surrealista e experimental.
A casa das tentações traz os anos 70 até nós. Uma palavra exclamada pelo cenografista maluco, “cafona”, ressuscita caracteristicamente esse universo em que John Lennon, Yoko Ono mais os efeminados então embrionários começavam a impor uma visibilidade estonteante. Como os executivos que querem montar um prostíbulo dançante enquanto dois pombinhos tentam fazer sexo ou amar-se, em A casa das tentações Biáfora quer fazer um cinema avançado enquanto sua carruagem o faz descer pelo perau até um porão no fundo do vale.
Várias figuras reiterativas do cinema brasileiro estão no elenco. Araçary de Oliveira (aqui creditada como Arassary), que foi a prostituta Ana Paula em Tocaia no asfalto (1962), de Roberto Pires, aqui é Isabel, uma burguesa pragmática no centro da trama. E também vemos Anselmo Duarte, Sérgio Hingst, Fauzi Mansur, Carlos Reichenbach, Selma Egrei, que surgem (Selma especialmente) como rompantes de luz fantasmagóricos na cena. Lamenta-se somente que Biáfora não tenha desenvolvido mais sua carreira de diretor, na expectativa de que ele pudesse dar consistência a seu projeto então nebuloso.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br