Flaubert Por Sartre

Jean-Paul Sartre reitera sempre que escreveu seu ensaio romanesco sobre Gustave Flaubert porque queria escrever sobre alguem muito diferente dele

09/10/2021 02:31 Por Eron Duarte Fagundes
Flaubert Por Sartre

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O PRIMEIRO VOLUME

Está na história: Gustave Flaubert, um dos maiores escritores do mundo, teve dificuldades de alfabetização. Foi aprender a ler, aos trancos e barrancos, quando entrou no liceu, aos nove anos de idade. Jean-Paul Sartre, o filósofo que se considerava o oposto de Flaubert (menos apegado ao formalismo, mais ideias que sentimentos, talvez mais “inteligente”), parte deste problema de formação de Flaubert para investigar as próprias grandezas e limitações do gênio literário, no primeiro volume de O idiota da família (L’idiot de la famille; 1971).

Segundo Sartre, este seu livro-testamento seria a continuação de seu Questão de método (1957), e seu tema estaria numa frase: “o que se pode saber de um homem, hoje em dia?” A dialética de leitura pedida por Sartre para O idiota da família é que o leiamos como romance e como verdade: um documentário de ficção, se aplicarmos uma teoria do cinema ao método literário.

Sartre é certamente impiedoso com sua admirada personagem. “Gustave era um pobre de espírito, de uma inverossímil credulidade patológica; caía com frequência em longos torpores, seus pais perscrutavam seu rosto e temiam que fosse idiota.” No fundo, o Flaubert de Sartre é o mesmo de Guy de Maupassant em Étude sur Gustave Flaubert (1884), mas os pontos de vista são muito diversos: enquanto Maupassant demonstra constantemente que os percalços iniciais do escritor foram superados por sua genialidade posterior, Sartre mantém sempre uma mira perversa, topando mesmo na trajetória mais exitosa de sua personagem laivos da idiotice na qual iniciara a vida. Nestes anos do século XXI, em que se desmonta facilmente o intelectual em suas pretensões de domínio do saber e até Sartre é desancado por autores de agora como o sociólogo Michel Maffesoli e o romancista Michel Houellebecq, se pode pensar na irreverência extraordinária de Sartre como uma antecipatória autorreferência. Seria Sartre assim tão diferente de Flaubert? Um escritor que retrata outro escritor não está, necessariamente, aqui e ali, retratando-se, assim como um romancista que inventa uma personagem-escritor? Seria O idiota da família um afresco em palavras do descalabro da mente do intelectual burguês a cuja classe, bem ou mal, todos os intelectuais pertencem, ainda quando tenham saído originalmente do povo (não é o caso —vir do povo— nem de Sartre nem de Flaubert)? Hipóteses críticas. O idiota da família, objeto deste texto de hipóteses, é, confessa-o o próprio autor, tecido assim: de hipóteses. Sartre transforma-se num rato atrás de cartas, documentos, manuscritos desconhecidos ou quase de Flaubert, relê as obras básicas do escritor, para construir seu próprio Flaubert, uma colcha de hipóteses, um Flaubert um tanto à sombra do homem Sartre.

A ambiguidade sexual de Flaubert evocada por Sartre, por exemplo. Na parte final do primeiro volume, Sartre se detém nas relações de amizade entre Alfred Le Poittevin, tio do escritor Maupassant pela parte materna e alguns anos mais velho que o futuro autor de Madame Bovary (1857), e Flaubert. Sartre evita dizer concretamente que tenha havido contatos físicos entre Alfred e Gustave, mas deixa no ar o que ele chama hipótese. Também diz ao leitor que não interessa para a análise se o contato físico houve ou não: o que vai interessar a Sartre é uma espécie de homossexualidade espiritual, que nasce de considerações das características íntimas das duas personagens históricas. Sartre refere a passividade de Flaubert, como personalidade e como personalidade sexual. Insta com o leitor neste ponto. E aduz que não importa se a relação se dá com mulheres ou com homens. Exemplifica identificando a submissão às carícias como ato feminino, passivo; e dá um exemplo: a felação, que seria a preferência de Gustave, é um ato passivo, submetido, feminino. Contrapõe a felação à penetração, que seria o ato do macho, o comportamento ativo. Estas reflexões lá pelas tantas se estendem a Alfred, o mais velho, admirado por Gustave; morto cedo, sem produzir o que sua inteligência, segundo Gustave, lhe permitiria, Alfred sobreviveu na posteridade como o tio de Maupassant e o amigo de Flaubert. O leitor de O idiota da família nota no narrador de Sartre as delícias emocionais das descrições da personalidade sexual de Gustave, ainda que tudo esteja vazado sob uma instância cerebral; é um pouco como se Sartre, desvanecendo-se em seu próprio machismo, se metesse no meio de Alfred e Gustave para esta sarabanda sexual-intelectual que é uma das hipóteses de O idiota da família.

Um ensaio, uma biografia, umas possibilidades ficcionais e igualmente uma tentativa de, após longas digressões, resumir o que é a vida de determinado homem: “A linguagem, para Flaubert, nada mais é que a Estupidez, enquanto a materialidade verbal, deixada a si mesma, se organiza em semiexterioridade e produz um pensamento-matéria.” Depois de algum tempo, poderá o próprio ensaio de Sartre transformar-se numa autobiografia esmaecendo-se as diferenças entre escritores tão distantes em época e conceitos?

 

O SEGUNDO VOLUME

 

Jean-Paul Sartre reitera sempre que escreveu seu ensaio romanesco sobre Gustave Flaubert porque queria escrever sobre alguém muito diferente dele. O idiota da família (L’idiot de la famille; 1971) é este espelho invertido composto pelo filósofo a partir de sua visão do romancista. Pouco a pouco a prosa sartreana se mimetiza em seu duplo ou oposto, o romancista sintático destroçado pelo romancista dos fluxos analíticos, A idade da razão (1945) agindo sobre Madame Bovary (1856). O segundo volume de O idiota da família debruça-se na loucura flaubertiana, suas perturbações que nasceram e se alongaram tendo como primeiro ponto da reta no episódio de doença de Pont-l’Évêque. “Numa noite de janeiro de 1844, Achille e Gustave voltam de Deauville, onde foram ver o chalé. Está escuro como breu, o próprio Gustave está guiando o cabriolé. De repente, nas cercanias de Pont’-l’Évêque, enquanto um carreteiro passa à direita do cabriolé, Gustave larga as rédeas e cai fulminado aos pés do irmão.”

O idiota da família é um romance de Sartre, certo, como ele quer, mas tem algo de captar as atmosferas dos textos de Flaubert, “a ambiguidade objetiva” dos “primeiros parágrafos de Madame Bovary”. Este encontro de texto entre Sartre e Flaubert, dois pilares da literatura francesa que se aproximam e afastam ao mesmo tempo é um pouco como “encontro marcado em Samarcanda”, assim como Sartre anota sobre os abismos de sua personagem. “Pode-se dizer que ele foge desabaladamente dessa catástrofe ao mesmo tempo que corre para ela”. A busca do abismo pelo artista, como alude o alemão Thomas Mann em certo lugar. Lentamente, O idiota da família sai das mãos de Sartre para as de Flaubert, e retorna, sob simbiose. Depois de tantas divagações curvilíneas e multiformes, na frase final do segundo volume, Sartre aponta para as descobertas que a releitura de Madame Bovary pode trazer. Paralelamente, é o que este comentarista está fazendo, ler Bovary no original francês. Enquanto a promessa de Sartre para o terceiro volume é aguardada. “por outro lado, a doença de Gustave exprime em sua plenitude o que deve ser chamado de sua liberdade: o que isso quer dizer poderemos entender só no fim desta obra depois de relermos Madame Bovary”. É o que nos resta: aguardar.

 

O TERCEIRO VOLUME

 

Lido agora o terceiro volume de O idiota da família (L’idiot de la famille; 1972), torna-se bastante claro que o autor do volumoso ensaio, Jean-Paul Sartre, se esforça por derrubar ao chão um dos cumes da literatura burguesa, a ficção de Gustave Flaubert. Sartre tem o que se chama hoje o lugar de fala: é francês, é um bom burguês, tem prestígio intelectual; ressalvadas as diferenças históricas que nascem das transformações da sociedade francesa. Sartre dizia que estava escrevendo sobre Flaubert porque o considerava seu antípoda: Flaubert era preciosista e trivial. Sartre tinha-se por pensador que estava acima dos fricotes de linguagem e dos lugares-comuns (ou ao menos tentava fugir destas coisas flaubertianas). O espelho montado por Sartre aproxima e afasta os opostos assemelhados.

No terceiro volume Sartre começa referindo-se àquilo que tratara em seus volumes anteriores, a gênese proto-histórica da neurose de Flaubert e no entanto a forma como esta gênese se manifestava nas estruturas subjetivas do indivíduo, produzindo obras únicas dentro do contexto literário de outros indivíduos semelhantes e menos cotados. Pouco a pouco, no terceiro volume, assoma a neurose objetiva que se descortina em Flaubert individualizando-a: a maneira como o romancista neurótico, cuja neurose se manifesta mais claramente no romance Madame Bovary e na figura de sua personagem central, se insere numa determinada sociedade e como esta sociedade está representada nas manifestações artísticas de Flaubert.

Flaubert, o genial escritor, é, em O idiota da família, um objeto comum de um ensaio agudíssimo: o artista derrubado ao chão para não impedir as identificações sociais de Sartre.

A frase final do terceiro volume retoma a observação que conclui o segundo volume: para entender a doença de Flaubert (segundo volume) ou sua obsessão de Arte pura (terceiro volume), necessita-se reler Madame Bovary. Que conste, Sartre pretendia concluir seu ensaio flaubertiano com esta releitura crítica. Sua velhice, doença e morte o estorvaram. Mas, nas edições póstumas de O idiota da família, Arlette Elkaïm-Sartre, filha adotiva do ensaísta e filósofo, juntou os manuscritos da releitura de Madame Bovary que Sartre de fato fez mas não chegou a compor sob uma forma final, restando, para o leitor de hoje, os ossos do esqueleto remontado por Arlette.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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