Sartre: Algum Ainda o Leva a Srio?
A idade da razo (L?ge de raison; 1945) uma das principais obras de fico de Sartre
O francês Jean-Paul Sartre teve uma vida gloriosa. Todos o ouviam: seja qual fosse o assunto de que tratasse. Talvez nenhum outro intelectual de nosso tempo tenha tido tanto prestígio: exigente e complexo em seus conceitos, discutidos por admiradores e detratores, Sartre era também bastante conhecido entre o povo, favorecido por uma época em que os meios de comunicação de massa começavam a desenvolver-se em plenos pulmões ajudando a popularizar sua imagem e suas falas nem sempre acessíveis a todo o mundo. Com sua morte em 1980, pouco a pouco o mundo deixou de reverenciá-lo: quem o lê ou relê é um grupo mais elitista, de pouca influência cultural; alguns franceses da atualidade, como o sociólogo Michel Maffesoli e o romancista Michel Houellebecq revelam, em suas manifestações, uma certa repugnância para com a escrita e as ideias de Sartre. Assim, no plano midiático do século XXI, o que temos é um Sartre no negativo. O que há na visão que os homens têm de seus pares é alguma miopia, indelevelmente; e este texto aqui, de um velho leitor de Sartre, que continua a amar sua literatura e sua filosofia, pode ser incluído no mesmo padrão de deficiência ocular —com a diferença de que aqui falta voz midiática.
A idade da razão (L’âge de raison; 1945) é uma das principais obras de ficção de Sartre; é o primeiro romance da trilogia Os caminhos da liberdade; a ele sucederam Sursis (1949) e Com a morte na alma (1950). No ano seguinte à publicação de A idade da razão, o escritor publicou seu extenso ensaio O ser e o nada (1946), suma do existencialismo. Vistos um ao lado do outro, A idade da razão parece uma encenação romanesca das ideias desenvolvidas em O ser e o nada.
Mathieu é a personagem central de A idade da razão. No começo da narrativa ele já tem uma pedra: sua amante Marcelle está grávida; para não ter de casar (estamos na França, mas nos anos 40), ele a convence a aceitar fazer um aborto; mas para isto precisam de dinheiro; ninguém empresta o dinheiro a Mathieu, sua peregrinação financeira é tão patética quanto inútil; até que se arranja um casamento do amigo Daniel, um homossexual, com Marcelle, para tapar assim a gravidez. Na maneira como expõe o homossexualismo e as reações das pessoas à existência de homossexuais, Sartre é curiosamente retrógrado e machista: se o compararmos com Marcel Proust ou André Gide, que o antecederam, veremos bem o quanto o sábio filósofo foi arcaico nestes conceitos. Mas nada disto impede que as características soturnas com que o ficcionista expõe as fraturas duma liberdade almejada pela personagem sejam profundas e notavelmente inquietantes: o existencialismo de complicadas teorias do pensador é traduzido para um universo ficcional e no entanto transparente. Influenciado por Dostoievski, de quem ele também se afasta, Sartre ainda aduz o roubo de dinheiro que, em sua dialética autojustificativa, Mathieu pratica, ao valer-se das distrações de sua amiga Lola, uma figura de cabaré grotescamente pintada pelo narrador.
A idade da razão, como toda obra de arte, pertence a seu tempo. O tempo do livro de Sartre é a melancolia áspera que havia na Europa no fim da II Guerra Mundial: os anos 40 estavam na metade. Mas isto não significa o enfraquecimento da força de atualidade de um texto que o autor domina, pois sua grande capacidade de manipular as personagens tornam sua narrativa sempre tensa e vigorosa. Se alguém vencer as reservas a um mito envelhecido e ousar aventurar-se por páginas com cheiro de antanho, vai descobrir ali os grandes prazeres de sempre da literatura.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br