Flaubert por Maupassant

Guy de Maupassant (1850-1893) escreveu um breve ensaio sobre Gustave Flaubert (1821-1880), Étude sur Gustave Flaubert (1884)

05/05/2017 00:04 Por Eron Duarte Fagundes
Flaubert por Maupassant

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Quando um escritor toma como objeto de estudo a um outro escritor, é bem provável que ele transforme seu objeto numa personagem. Em se tratando de ficcionistas, então. Guy de Maupassant (1850-1893) escreveu um breve ensaio sobre Gustave Flaubert (1821-1880), Étude sur Gustave Flaubert (1884). É o depoimento de um  contemporâneo: espantosamente ainda atual em quase tudo. Mas a atualidade central destas divagações de Maupassant em torno de Flaubert é estrutural: Maupassant, um dos grandes contistas do século XIX, muda a figura de um escritor conhecido da posteridade numa personagem. Então Étude sur Gustave Flaubert se converte numa espécie de novela crítica: estamos diante de algo muito próximo de nós, a criação duma poética da função crítica, ver com olhos libertários a obra de arte. A vida e os paradoxos da personalidade de Flaubert estão, no ensaio de Maupassant, misturados com trechos e análises da escrita do grande romancista, umas coisas explicando outras e também na via contrária, aquilo que explicava é depois explicado pela coisa antes explicada.

Maupassant privou com Flaubert e suas descrições, quase ao fim de seu ensaio, sobre os frequentadores das casas de Flaubert, tanto no campo, em sua propriedade em Croisset, próximo de Rouen, quanto em seu salão de Paris, têm uma autenticidade própria, algo duma crônica de época, lapidada por um contista exato e refinado. Segundo Maupassant, falando de Flaubert, “il passa la plus grande partie de son existence dans sa propriété de Croisset, près Rouen” (“ele passou a maior parte de sua existência em sua propriedade de Croisset, perto de Rouen”). E havia um motivo nostálgico: “Il aimait ce superbe et tranquille paysage que ses yeux avaient vu depuis son enfance” (“ele amava esta superior e tranquila paisagem que seus olhos se acostumaram a ver desde a infância”). E uma função filosófica: “Il prétendait que Pascal était venu dans cette Maison et qu’il avait dû aussi marcher, rêver et parler sous ces arbres” (“ele pretendia que Pascal viera a esta casa e que ele devera também caminhar, sonhar e falar sob estas árvores”). Mais para o fim de seu relato, Maupassant põe em cena os encontros dos escritores na residência parisiense de Flaubert: “Il recevait le dimanche, depuis une heure, jusqu’à sept, dans un appartement de garçon, très simple, au cinquième étage” (“ele recebia no domingo, da uma até as sete, num apartamento de rapaz, muito simples, no quinto andar”). Maupassant não se cita, faz desfilar o russo Tourgueniev (“le premier venu souvent”, “geralmente o primeiro a chegar”), Alphonse Daudet, Émile Zola (“toujours suivi de son fidèle Paul Alexis”, “sempre acompanhado de seu fiel Paul Alexis”) e outros menos cotados neste século XXI, como o editor Charpentier. Maupassant não se põe no texto entre os convivas: mas sabemos todos que ele está lá, entre eles. Ocorre que em Étude sur Gustave Flaubert Maupassant se põe num canto da sala como um observador, retira-se de cena mas ao mesmo tempo está em cena pela veracidade do relato. Um pouco Maupassant é um olho de sua época, um pouco é intemporal e atravessa os séculos, vindo ter ao colo dum leitor qualquer perdido no século XXI.

Observando o desenvolvimento da paixão literária de Flaubert desde anos tenros (“sa grande passion, dans son enfance, était de se faire dire des histoires”, “sua grande paixão, na infância, era deixar-se a ouvir histórias”), Maupassant, também um torturado da frase precisa, se embeiça pela obstinação de Flaubert na busca dos únicos termos para dizer determinada coisa. O Flaubert que teve dificuldade de alfabetização na primeira infância se dissolve no artista que, apesar de ser um agradável de convivência, detesta a mediocridade. E como, atenta para isto Maupassant, Flaubert vence a mediocridade —da linguagem e da vida? Pela sintaxe: uma palavra unida à outra. No texto do “Don Juan de Flaubert”, citado longamente em Étude sur Gustave Flaubert, lemos: “L’objet principal (au moins de la seconde partie), c’est l’union, l’égalité, la dualité, dont chaque terme a été jusqu’ici incomplet, se fusionnant, et que chacun montant graduallement aille se compléter et s’unir au terme voisin” (“o objeto principal, ao menos na segunda parte, é a união, a igualdade, a dualidade, onde cada termo esteve até aqui incompleto, se fundindo, e que cada um subindo gradualmente vá completar-se e unir-se no termo vizinho”). Esta ligação de palavras para a produção de sentido lembra a teoria da imagem relacionada à outra do cineasta francês Robert Bresson, outro torturado da forma certa, do rigor formal: “É preciso que uma imagem se transforme no contato com outras imagens, como uma cor no contato com outras cores. Um azul não é o mesmo azul ao lado de um verde, de um amarelo, de um vermelho. Não há arte sem transformação.” (in Notas sobre o cinematógrafo, 1975). No entanto, é fato que um dia, fulminado por sua tarefa hercúlea, Flaubert cai contra o pé de sua mesa de trabalho: isto se deu quatro anos antes do relato de Maupassant. Na visão do escritor que é Maupassant, foi a Literatura que matou Flaubert, assoberbado, “tué comme tous les grands passionés que dévore toujours leur passion”, “morto como todos os grandes apaixonados que a paixão sempre devora”.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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