O Outro Lado de Flaubert
A ficcionista portuguesa Agustina Bessa-Lus desafia o escritor frances Gustave Flaubert em Vale Abra?o (1991)
A ficcionista portuguesa Agustina Bessa-Luís desafia o escritor francês Gustave Flaubert em Vale Abraão (1991), ao contar a multifacetada história de Ema Paiva, que seria êmulo contemporâneo e lusitano da francesa oitocentista Ema Bovary, a criação de Flaubert. As semelhanças entre o romance de Bessa-Luís e Madame Bovary (1856) são superficiais: os nomes das personagens básicas, certas referências míticas e críticas.
Porque Bessa-Luís é uma autora autenticamente de nosso tempo, onde a objetividade e o rigor psicológico flaubertianos só sobrevivem em alguns anacrônicos, onde o bem-sucedido vai depender muito da criatividade linguística de quem se aventura a andar à sombra de uma escrita clássica. Bessa-Luís está longe de ser uma discípula de Flaubert, embora se note que o admira e o lê admiravelmente; ela subverte o jogo flaubertiano, desmanchando o racionalismo narrativo com imagens fortes e disparatadas que se vão acumulando para formar um conjunto impressivo e impressionista, só possível depois das experiências do francês Marcel Proust e do irlandês James Joyce.
E Bessa-Luís vale-se também de suas experiências cinematográficas nos roteiros do cineasta luso Manoel de Oliveira. Seu Vale Abraão é também um caleidoscópio cinematográfico; não surpreende que Oliveira o tenha filmado numa realização de 1993. As características cinemáticas do livro de Bessa-Luís não atrapalham sua essência literária, graças à magia com que a autora manipula as palavras.
As referências literárias de Vale Abraão são muitas, embora partam sempre de Madame Bovary. Há uma passagem que alude à poesia da norte-americana Emily Dickinson, com a qual o texto de Bessa-Luís (intrínseca e demoniacamente lírico) se identifica claramente. Há muitos aspectos difusos psicologicamente no texto, seguindo a desestruturação pós-moderna, captações interiores e verbais; e é pós-modernamente que Vale Abraão vai discutir a semelhança de sua personagem com a de Gustave Flaubert. “Enquanto Ema Bovary deixa perceber o equívoco, porque é um homem desencorajado de sua virilidade e se refugia no travesti, Ema Paiva era uma mulher-espetáculo.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br