A Tempestade Moral e Estetica
Entre duas tempestades, O Acontecimento ajusta sua inalienavel capacidade de dizer muito ao universo do cinema contemporaneo
Ainda que precedido do Leão de Ouro do Festival de Cinema de Veneza no ano passado, O acontecimento (L’événement; 2021), rodado na França por Audrey Diwan, surpreende o espectador. Quando recebeu o prêmio em Veneza, a realizadora francesa fez uma frase tão forte quanto seu filme e definidora do espírito que desembarcou nela para fazer o que fez: “J’ai fait ce film avec colère et désir. Je l’ai fait avec mon ventre, avec mes tripes, avec mon coeur et ma tête.” Audrey, uma mulher, teve de fazer das tripas coração para penetrar num assunto explosivo para as mulheres. Teve como corroteirista outra mulher, Marcia Romano. O livro original é um romance autobiográfico de Annie Ernaux, de 2000; Annie é por aqui uma escritora tão desconhecida quanto a cineasta Audrey, embora a romancista, identificada como autora de ficção memorialista, seja elogiada em seu país natal. Diwan, a diretora de O acontecimento, fez antes um outro filme, Mais vous êtes fous (2000), que seria bom se, na carona do atual sucesso de estima do segundo filme dela, os distribuidores se antenassem para fazer chegar ao Brasil.
Ambientado em 1963, em que a liberação sexual ainda topava com os arcaísmos da legislação e da moral vigentes, O acontecimento vai acompanhar o périplo de Anne, em magnífica composição de Anamaria Vartolomei, desde o momento em que descobre sua gravidez e em toda a sua caminhada para fazer um aborto em que as cartas (sociais, morais, das próprias amizades) estão no fundo contra ela; sua aventura quase solidária em busca de resolver o problema é descrita pela cineasta (uma mulher madura, de 40 anos, vendo-se no corpo duma adolescente, a personagem Anne e a atriz Anamaria) com uma força estética sem concessões; o ponto alto desta crueza de linhas formais do filme situa-se basicamente em dois instantes, a sequência de características documentais (embora não seja um documentário) da realização do aborto (a persistência desesperada e dolorida de Anne contraposta à rigidez distanciada e assombrosa da aborteira Madame Rivière na face assustadora de Anne Mouglalis) e também as imagens cambaleantes e tristes quando o feto finalmente é expulso do corpo de Anne para o vaso sanitário; nestas duas filmagens as cenas apresentam um realismo em bruto, uma vontade de atacar o estômago passivo do observador cinematográfico, passa ali aquela atmosfera com que a diretora diz ter feito seu filme (“com cólera e desejo, com o ventre, com as tripas, com o coração e com a cabeça”) para dentro da plateia, numa vertente de filmar às vezes pasoliniana.
Captando a moral dos anos 60 (ainda hoje, não inteiramente sepultada), O acontecimento não põe, em momento algum da narrativa, na boca das personagens, o vocábulo aborto (“avortement” em francês). Era o tabu de época. Nem Anne, a principal interessada, embora de conduta sexual liberada, ousava contraditar o meio em que vivia: só murmurava que não podia levar adiante “isto”.
Do ponto de vista do comportamento da câmara, a realizadora faz com que a máquina de filmar persiga as personagens pelo cenário, indo-lhes no encalço, especialmente no encalço de Anne, a figura central. A câmara amiúde se cola no pescoço, nos ombros, na parte superior das costas de Anne quando ela caminha. Este dado levou alguns ao equívoco, citando os irmãos belgas cineastas Dardenne. Ocorre que a forma com que Diwan se vale do procedimento diverge bastante dos Dardenne: tem uma outra densidade estilística, longe da instabilidade dos belgas.
Entre duas tempestades, a moral e a estética, O acontecimento ajusta sua inalienável capacidade de dizer muito ao universo do cinema contemporâneo.
P.S.: 1. Cabe observar a ironicamente enviesada presença da atriz Sandrine Bonnaire como a mãe de Anne; para o observador que viu Sandrine como o outro lado da moeda, a jovem que por seu comportamento era a peça familiar contestatória em Aos nossos amores (1983), de Maurice Pialat, a sensação histórico-cinematográfica se instala. E é bom referir com ênfase aquilo que escreveu Flávio Balestreri num belo ensaio publicado no Cinemarcoblog (de Marco Antonio Bezerra Campos): “Mais do que nunca, este é um filme só possível vindo de uma sensibilidade feminina." Cineasta, corroteirista, escritora do livro original e intérpretes principais: mulheres.
2. Alguns outros filmes que fizeram suas investigações em torno do tema do aborto. Há o clássico Um assunto de mulheres (1988), de Claude Chabrol, com a famosa cena duma Isabelle Huppert esbugalhada e tensa dizendo uma Ave-Maria profana. O inglês Mike Leigh fez o curioso O segredo de Vera Drake (2004), também tratando duma aborteira, como no filme de Chabrol, só que com muito menos crueldade que o diretor francês. Em tempos recentes, três extraordinários filmes pouco referidos: 4 meses, 3 semanas e 2 dias (2007), do romeno Cristian Mundiu, contando o périplo de duas amigas, uma delas grávida, em busca de fazer o aborto; o documentário francês As oficinas de Deus (2007), de Claire Simon, passando-se numa clínica onde mulheres grávidas à espera do aborto dão seus depoimentos de porque querem livrar-se da gestação; e Nunca raramente às vezes sempre (2020), de Eliza Hittman, aqui, como no filme romeno, duas amigas, uma delas grávida, fazendo seu percurso do aborto. A questão do aborto tem sido objeto da ressurreição no século XXI duma moral vesga e medievalesca, e reflexionar sobre essa questão pode ser incômodo mas é necessário.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br