Um dos Del?rios Liter?rios de Saramago
O Ano da Morte de Ricardo Reis, depois de longo divagar mais ou menos escorreito, se conclui como comecara
Ainda que seja um prosador transparente em suas intenções e mesmo em sua linguagem, o português José Saramago se vale de situações excêntricas e provocativamente alegóricas no coração narrativo de muitas de suas obras. Em O ano da morte de Ricardo Reis (1984) ele vai à persona estética do poeta Fernando Pessoa; antes de mais nada, extrai do corpo poético de Pessoa um dos heterônimos do poeta, Ricardo Reis. Pessoa já morreu antes de começar a narrativa, mas Reis vaga como um corpo à parte num hotel luso, envolvendo-se com uma criada, Lídia, e com a filha dum amigo, Macenda. Pessoa e seu heterônimo são partes do diversionismo criativo de Saramago.
A excentricidade é um dado da arte de Saramago. Em A jangada de pedra (1986) a península ibérica se aparta do restante da Europa e vai andando pelo Atlântico. Em Ensaio sobre a cegueira (1996) toda a comunidade se torna cega, sobrando somente uma pessoa com visão, uma mulher. A grandiloquência coletiva e fantasmagórica volta a habitar um texto do escritor em O ano da morte de Ricardo Reis.
Fluido e fácil, seu barroquismo não tem os fragmentos complexos de vozes e linguagem de seu patrício António Lobo Antunes. O ano da morte de Ricardo Reis, depois de longo divagar mais ou menos escorreito, se conclui como começara. No início lemos: “Aqui o mar acaba e a terra principia.” No fim pouco se altera (um pronominal substitui o intransitivo e o princípio agora é espera): “Aqui, o mar se acabou e a terra espera.” Dos funerais de Fernando Pessoa, o romancista José Saramago erige a mobilidade de cinzas de Ricardo Reis. Saramago não desdoura o ilustríssimo passado das letras lusitanas.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br