O Critico de Cinema Como um Estudioso
Sim: Eneas acompanha com seu pensar v?rios outros diretores


Enéas de Souza é um dos textos mais agudos da crítica cinematográfica gaúcha. De maneira clara e muito pessoal, em seu novo livro de ensaios cinematográficos, Os filmes pensam o mundo (2021), ele propõe o exercício de espectador de cinema exatamente assim: cada filme é um pensar o mundo em imagens e o pensar do espectador a partir do filme vai por aí, devolve ao filme um pensar em imagens. Pertencente a uma geração antes das eras dos VHS, dvds e muito antes da internet, onde os detalhes de um filme podem ser reexaminados em diversas revisões, Enéas, economista, filósofo, abdicou da crítica diária porque em seu tempo não podia ver, rever, tresver os filmes, como achava que tinha de ser para bem analisar estes filmes à luz do cinema que vê o mundo em imagens. Perdemos, ao longo dos anos, esta brilhante cabeça que poderia debruçar-se diariamente em jornais para falar de filmes, como tantos outros, e só em tempos atuais, em artigos da revista “Teorema” e então em livros como este Os filmes pensam o mundo, na civilização forte da internet, Enéas se abalançou a tornar a mergulhar na profundidade cinematográfica outrora escondida no clássico Trajetórias do cinema moderno (1965), e em alguns ensaios esparsos mais antigos.
Enéas desloca a questão da realidade de filmar, para o pensar o filmar, a imagem da realidade se converte na realidade da imagem. Mesmo tratando dum documentário, o que Enéas vê (e nós vemos, leitores, antes espectadores, vemos com ele) é uma imagem, uma montagem, uma fotografia, não a realidade mesmo. O cinema de Eduardo Coutinho (um documentarista em sua gênese) é um bom ponto de partida para a essência desta forma de ver cinema: os pontos de contato com a realidade reconstituídos. “A grande virtude de Coutinho é revelar que a sua aproximação ao real já leva e já constrói um conteúdo ficcional.” E o crítico provoca: “Com isso, chegamos à outra margem do cinema do cineasta, o documentário desafia o real pela inoculação do imaginário.” E observações de extrema sutileza: “Mesmo os planos repetidos da filmagem não são idênticos.” E agudiza: “Não, o que Coutinho nos traz é um contato cinematográfico antropológico.” Estas divagações não impedem Enéas de ver o coração do cinema tal como Coutinho o pensa: “A aventura de filmar o improviso do mundo.” Mas o ensaísta retorna à sua curva nevrálgica: “Como dizia Pascal, o homem um caniço pensante, o mais frágil da natureza. E, tal como Coutinho, ele tem a ousadia de buscar e ver e mostrar as frações e as imagens de sua fragilidade.”
Sim: Enéas acompanha com seu pensar vários outros diretores, Ingmar Bergman, Quentin Tarantino, Martin Scorsese, Jorge Furtado, Eryk Rocha, Woody Allen, David Cronenberg, tantos outros. Mas aqui se escolhe o cinema de Coutinho para iluminar uma leitura de Os filmes pensam o mundo porque em Coutinho há paradoxos que navegam nas ideias que Enéas expõe, embora Coutinho pareça nascer um pouco do pensar cinematográfico de Jean-Claude Bernardet: dizem que Cabra marcado para morrer (1983) teria sido feito por Coutinho para responder a certas questões da filosofia de cinema de Bernardet, que depois surgiu em livro quase contemporaneamente com o filme, Cineastas e imagens do povo (1985). Seguimos com Enéas. “O cinema é pensar. E o cinema pensa através das imagens visuais e sonoras.” Em Enéas a dialética entre o pensar cinema e o fazer cinema se resolve no ato do cinema como um pensar em imagens. Nesta busca das imagens que pensam o mundo (pensar não é retratar), os cineastas podem chegar a associações inesperadas, no olhar do crítico. Examinando um filme do italiano Nanni Moretti em torno duma eleição papal, Enéas dá a conclusão (ou pergunta sofisticada): “Não será o Vaticano uma metáfora do cinema?” Seremos todos (os que vemos cinema em tudo) uma metáfora desta arte de pensar em imagens?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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