O Aforismo Como Ensaio: Godard Anos 60
A atualidade e a perman?ncia de One Plus One pode ser constatada plano a plano, um por um, um mais um
Jean-Luc Godard segue, na velhice, revolucionando as formas cinematográficas. Mas os anos 60 do século passado (que começaram no fim dos anos 50) foram o ponto crucial de seu prestígio: o mundo, e o mundo do cinema, estava preparado para um cineasta como ele. Foi em 1968 que, estando em Londres para fazer um trabalho sobre o aborto (o que não se concretizou por novos fatos sociais que levaram os produtores ao desinteresse do projeto), Godard instou com seus investidores para aproveitar o tempo fazendo um documentário em torno de uns ensaios que o grupo musical The Rolling Stones estava elaborando por ali. O resultado foi o filme One plus one (1968), que, depois, na sequência mais clandestina do cinema de Godard, andou em circulação bastante restrita pelo mundo, em circuitos muito alternativos, pois o universo social dos anos 70 já trazia os desgastes da geração do vale-tudo da década anterior.
As filmagens dos ensaios dos Rolling Stones para a música Sympathy for the Devil são a motivação comercial de One plus one, o pretexto que tinha Godard para convencer os produtores. No local onde os músicos exercitam instrumentos e vozes, o cinema de Godard mistura o despojamento rigoroso de alguns planos fixos com movimentos de câmara laterais e sinuosos pelo espaço cinematográfico, captando uma reflexão instintiva sobre a criação artística. Godard vale-se dos Stones para, à maneira de A chinesa (1967), rodar mais um daqueles inquietantes fragmentos ensaísticos, ao modo como costumava fazer na época, o que difere um pouco, não inteiramente, dos filmes-ensaio que ele tem feito mais recentemente. Os ensaios do famoso grupo musical inglês são pontas intersticiais da verdadeira ousadia do cineasta: inserindo algumas outras histórias ficcionais entre uma batida musical e outra dos Stones (os Panteras Negras num cemitério de automóveis, tergiversando sobre a civilização —lembram Geraldine Chaplin também entre cacos de automóveis em Nashville, 1975, de Robert Altman?—, a atriz Anne Wiazemsky uma Eva Democracia dando entrevista num bosque em que ela e seus entrevistadores caminham o tempo todo diante das câmaras, muros pichados, livrarias esquisitas e decadentes), Godard faz de One plus one o que sempre quis fazer do cinema, ideias que se convertem em estruturas de dramaturgia cinematográfica.
One plus one é, ainda hoje, um filme avançado para qualquer tempo. Em tempos recentes, os produtores passaram a divulgar o filme com o título Sympathy for the Devil, que é o título da música que estava na época no filme sendo ensaiada pelos Stones. Os investidores estavam interessados na saída comercial possível para a realização; algo sempre complicado em se tratando do estilo de filmar de Godard, talvez o mais constante gênio inventivo da história do cinema.
A atualidade e a permanência de One plus one pode ser constatada plano a plano, um por um, um mais um. Mas, entre as várias coisas, uma pergunta feita pelos entrevistadores irrequietos a Anne/Eva, entrevistadores que parecem nascidos ou pertencentes a uma equipe televisiva, conduz várias décadas do século XX e chega até nós: “Quando o romance morrer, a sociedade tecnológica dominará completamente?” A esta pergunta, como a todas as outras anteriores e posteriores, Anne/Eva alterna dois monossílabos, “sim” ou “não”. Sobre a morte do romance ante a tecnologia, ela dá o “sim”.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmahgazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br