Os Dias Que Vivemos

A precisao e a sensibilidade verbais com que Natalia Borges Polesso capta os instantes de vida sao um exito raro na literatura brasileira atual

01/03/2024 03:52 Por Eron Duarte Fagundes
Os Dias Que Vivemos

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Natalia Borges Polesso faz uma novela de evocações em Foi um péssimo dia (2023). A personagem, Natalia, quer, desde o começo do livro, reconstruir-se lembrando. “Eu acho que lembrar da gente anos antes é um ótimo exercício para se compreender no agora.” Natalia, a escritora, divide seu livro em duas partes: “para a minha mãe” e “para o meu pai”. Na primeira parte, o mundo escolar da infância, a rotina de ida e volta da escola sempre conduzida pela mãe, o belo dia em que a mãe se atrasou para a apanhar no colégio e a opção da menina de voltar sozinha ou ser conduzida por outros na volta para casa. A descoberta das primeiras angústias: da ansiedade inicial. Na segunda parte, já na adolescência, Natalia, personagem e narradora, ainda há o mundo escolar, colegas, professores, mas a vida familiar se transforma, a mãe está grávida, os pais estão por separar-se, os desejos de Natália afloram, primeiro o beijo num garoto, depois o beijo numa garota. A descoberta das transformações: próprias e familiares. “Meu pai tinha os seus quarenta e poucos anos, e isso quer dizer que muitas expectativas recaíam sobre ele.”

Natalia Borges Polesso segue fazendo uma literatura de extrema modernidade. Desnuda a edificação da linguagem: tão próxima da oralidade (brasileira, gaúcha ou serrana) de nossos dias quanto permite a possibilidade de reconstruir a vida em frases escritas. Em Foi um péssimo dia esta reconstrução do cotidiano se dá bastante pela memória, certo, mas esta memória é tão viva que se assemelha a um diário  escrito pela personagem, criança e depois jovem. Natalia, a escritora, com uma consciência literária aguda, entrega o verbo à personagem Natalia, o ser que vive na margem da literatura. O dia-a-dia brasileiro de hoje se organiza notavelmente no texto de Natalia, a ficcionista. A simbiose entre autora e personagem, que no fundo não podem confundir-se esteticamente, cria um fluxo complexo em direção à sua obra, a criatura real de Natalia de onde tanto a escritora quanto esta reconstrução em palavras da Natalia-personagem se originaram.

“Dei um passo à frente e fiquei bem perto dela. Fui aproximando meu rosto e dei um beijo na boca dela. Eu mesmo estava experimentando aquilo, não sabia direito, a gente nunca sabe como beijar alguém pela primeira vez, às vezes encaixa, às vezes precisa de tempo para encaixar, às vezes nunca dá certo. Deixei meus lábios colados nos dela por uns segundos e senti os lábios dela amolecendo um pouco e depois tensionando e depois puxando de leve. Era mesmo um beijo. Muito melhor do que aquele com o Eduardo na festa do Tomás e totalmente inesperado. Parei e dei um passo atrás.”

A precisão e a sensibilidade verbais com que Natalia Borges Polesso capta os instantes de vida são um êxito raro na literatura brasileira atual. Algo muitas vezes tentado e poucas vezes atingido com esta beleza. Despojar a narrativa literária de seus artifícios, ali está onde vemos a plena realização de Foi um péssimo dia.

Meu filho Gustavo esteve na sessão de autógrafos de Natalia, na Feira do Livro de Porto Alegre. Natalia anotou em nosso exemplar: “Gustavo! Que a literatura nos faça passar pelos dias péssimos.” Então, este velho leitor que sou, navegou para um antigo romancista brasileiro, o mineiro Cyro dos Anjos, que em O amanuense Belmiro (1937) põe o seguinte parágrafo neste romance feito como se fosse um diário íntimo escrito por sua personagem central: “Quem quiser que fale mal da literatura. Quanto a mim, devo a ela minha salvação. Venho da rua oprimido, escrevo dez linhas, torno-me olímpico.” É por aí. Para escritor e leitor, a literatura funciona assim: o torna maior do que parece ser, dá-lhe grandeza.

Na frase de abertura de Foi um péssimo dia, que citei nas primeiras frases deste comentário, a personagem diz que lembrar coisas de nossos dias nos ajuda a compreender o que somos no presente. No fim do livro, num diálogo com uma amiga, a personagem retoma esta ideia: lembrar para compreender-se. A amiga questiona: “—E tu acha que isso vai evitar problemas e dias ruins?” Natalia, a personagem, crê que não. A amiga: “—Nem péssimos dias?” A jovem narradora diz que não sabe. A frase final observa: “Eu não sabia mesmo”. Parece mais uma frase da escritora por trás da personagem que narra. Reconhecendo nas buscas da literatura um esforço na direção do que não sabemos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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