A Nova Legibilidade
A edicao bil?ngue de Wake permite ao leitor brasileiro aquilatar o esforco notael e bem-sucedido de Donaldo Schuler
De Finnegans Wake (1939), o mais radical trabalho do escritor irlandês James Joyce, escreveu o crítico norte-americano Harold Bloom que “apresenta tantas dificuldades iniciais que temos de nos preocupar com sua sobrevivência.” Na verdade é falso afirmar que haja textos ilegíveis; todo texto é legível ao menos para seu autor, nem que o seja no plano do inconsciente. O que o estilo joyceano de escrever produziu no século que está expirando foram imitadores que tenderam ao gratuito, a uma busca da quebra sintática e sonora da linguagem que de maneira alguma podem ser comparados com a consequência e o rigor da linguagem de Joyce, em que Wake é a suma enciclopédia (penso, por exemplo, em Glaucha, do gaúcho Paulo Ribeiro, um arremedo do universo joyceano).
Outra lenda sobre textos que exigem do idioma é de que há obras intraduzíveis. Na raiz toda obra literária é intraduzível. Há um caldo cultural que em muitas construções se perdem ao passar dum idioma para outro. Machado de Assis pode ser tão intraduzível quanto Guimarães Rosa, embora as frases deste exijam mais da língua. Wake não é mais nem menos traduzível do que William Shakespeare. O catarinense-gaúcho Donaldo Schüler o prova com uma tradução cheia de achados e correspondências.
Ao contrário do que podem pensar os analistas superficiais, nada é gratuito nas generosas invenções de Wake. Os rompimentos sintáticos, morfológicos, prosódicos são insubstituíveis em seu uso e atingem momentos do mais puro êxtase verbal. Claro que Joyce só poderá ser acompanhado em sua trilha por quem vive a literatura como a própria vida, quem não teme os avanços da palavra. Pior para os despreparados. Para os preguiçosos, aqueles mesmos que nunca lograram encetar a caminhada de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, talvez o único de nosso século que possa rivalizar com a obra-prima de Joyce. A senda de Joyce (e também de Proust) são pedregosas; asperezas poliglotas em Joyce e movimentos muito lentos em nova perspectiva em Proust; mas vale a pena romper estas dificuldades iniciais a que aludiu Harold Bloom, para chegar ao outro lado. “Então, como está outorizado comparar com as flores primaveris (sprangflowers) seu aniversário (his burstday) que foi uma verdadeirafiestadâmica ao luar livre para as minhocas”. Atingir a Lacrilanda (Irewater) onde Joyce mergulha seu verbo essencialmente onírico.
“O vento a arrosta. A onda a arrasta”, murmura o tradutor para “Wind broke it. Wave bore it”.
Muitas vezes simbolista em seus recursos estilísticos (a valorização do sonho como os poetas do simbolismo, a música na prosódia), na verdade Joyce é até bastante expressionista naquilo que é aparentemente simbolista. Tudo pende para um agudo significado verbal dentro da parafernália de sons que o narrador recria, “o verbo ventoso ventando um dado momento pelo chapéu de Mister Joyce, Melancólico Lento”.
A edição bilíngue de Wake permite ao leitor brasileiro aquilatar o esforço notável e bem-sucedido de Donaldo Schüler, que desfaz o mito da intraduzibilidade do livro de Joyce, que antes de ser ilegível é a edificação de uma nova legibilidade.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br