No Pescoco do Professor
O diretor de cinema frances morreu em 25.04.2024, aos 63 anos. Seu filme mais estimado se trata de Entre os Muros da Escola
O diretor de cinema francês morreu em 25.04.2024, aos 63 anos. Seu filme mais estimado é Entre os muros da escola, exibido em Porto Alegre na temporada de 2009. O texto que segue eu o escrevi quando o filme foi lançado por aqui, diante do calor das imagens, como se requer da veracidade de um texto crítico.
NO PESCOÇO DO PROFESSOR
A primeira imagem que aparece em Entre os muros da escola (Entre les murs; 2008) é a do pescoço de François Bégaudeau, o homem que escreveu o livro memorialista escolar que serviu de base para o filme do diretor francês Laurent Cantet e que no filme recria a si mesmo como professor de francês numa escola parisiense. Depois do plano do pescoço do professor (que na verdade é para onde se atiram as garras gerais da trama) o que vemos é o plano da caminhada da personagem pelo espaço do colégio rumo à sala de aula. Esta caminhada é física e também simboliza suas andanças para dentro do furacão que é dar aulas a adolescentes; é este furacão interior da escola contemporânea, vista a partir da França, que o observador vai acompanhar ao longo de pouco mais de duas horas de filme, e estamos diante de imagens do cotidiano, naturais, cheias daquela vida espontânea que de quando em quando o cinema francês (à luz de Jean Renoir) atinge com perfeição como neste caso.
O livro de Bégaudeau e suas histórias foram o ponto de partida do filme de Cantet, mas sua força cinematográfica nunca é livresca: os atores adolescentes são figuras buscadas nos subúrbios parisienses (amadores, pois) e a interação deles com o professor Bégaudeau, que se revive na tela, cria um universo pulsante, real como poucas vezes se pôde ver recentemente no cinema. Os planos são curtos, como instantâneos captados pela frase (curta) cinematográfica; a câmara está sempre próxima das personagens, os diálogos soltos e naturais preenchem exclusivamente a faixa sonora (sem música de acompanhamento, à maneira dos filmes do francês Eric Rohmer, só ruídos-ambiente e as vozes do elenco), o aparelho de filmar parece tenso e instável na mão do operador. É curioso ver como esta linguagem cheia de cortes, pela maneira despojada deste corte, se aproxima daquela cotidianidade lenta de O segredo do grão (2007), do também francês Abdel Kechiche, este um filme que se vale duma linguagem de poucos cortes, com sua profusão de planos-sequência. O plano sem corte está ausente de Entre os muros da escola, porém o espírito deste tipo de plano cinematográfico se insinua na proposta narrativa de Cantet. É um pouco como se os cortes de Cantet fossem abstratos.
A realização de Cantet revitaliza um assunto sempre presente no cinema francês, a questão escolar, desde o clássico Zero em comportamento (1933), de Jean Vigo. O francês François Truffaut prestou sua homenagem a Vigo no poético Na idade da inocência (1976). Outro francês, Bertrand Tavernier, usou a experiência de sua filha e de seu genro para rodar na periferia escolar francesa Quando tudo começa (1999). Louis Malle, mais um francês, mostrou uma escola da época da guerra em Adeus, meninos (1987), onde um garoto judeu era brutalmente arrancado da sala de aula pela Gestapo. Recentemente Nicolas Philibert, francês igualmente, documentou um ano escolar em Ser e ter (2002), onde um professor se ia adaptando lentamente a seus alunos. Como se sabe de notícias gaúchas recentes, em que um professor tapou a boca dum aluno com uma fita, as difíceis relações entre professores, alunos e pais de alunos têm uma atualidade permanente; Entre os muros da escola adota um realismo cortante para tratar destas relações: a maior parte do tempo o filme se detém nos conflitos entre o professor de francês e seus jovens alunos, mas há espaço narrativo também para a presença dos pais nos diálogos sobre a conflitiva convivência entre alunos e mestres.
As diferentes etnias dos alunos de Entre os muros da escola, como característica essencialmente francesa, formam um dado essencial para a maneira como se estabelecem as coletâneas de vozes que estão em cena. O plano inicial no pescoço do professor é silencioso. Depois todos os planos são invadidos pela habitual tagarelice gaulesa. E no final torna um plano silencioso: o plano duma sala de aula vazia, depois dum agitado ano escolar (como em Ser e ter, a narrativa de Entre os muros da escola se estende ao longo de um ano letivo). Mas no plano da sala vazia surgem, em segundos planos sonoros, os ruídos azafamados que vêm de fora da sala de aula. Na sequência anterior a esta imagem final Entre os muros da escola mostrou planos da confraternização ruidosa entre professores e alunos como encerramento do ano; os ruídos de segundos planos sonoros da imagem final vêm da penúltima sequência do filme —como um eco.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br