Os Corvos de Saura
Cria Cuervos: sua metafisica que se aparenta com o cinema do sueco Ingmar Bergman
A câmara se movimenta (para cima, para baixo, para os lados, em círculos ou em pequenas retas) em torno dum álbum de fotografias estampado numa parede. Cría cuervos (Cría cuervos; 1976) utiliza velhas fotografias para estimular o movimento inicial da memória. O realizador espanhol Carlos Saura codifica neste filme uma memória afetiva que se contrapõe à memória biológica que o francês Alain Resnais edificaria em Meu tio da América (1980) ou ainda àquela memória onírica que o italiano Federico Fellini trouxe em Amarcord (1974). Digamos que em Cría cuervos estamos diante da memória do coração humano, suas profundidades, suas ambiguidades morais ou estéticas. Este é um dado da natureza de Cría cuervos: sua metafísica que se aparenta com o cinema do sueco Ingmar Bergman; o corpo de Geraldine Chaplin se contorce na cama, ante sua agonia, a dor consome a personagem um pouco à maneira do intenso sofrimento físico encenado por Harriet Anderson em Gritos e sussurros (1973), de Bergman. Ocorre tão-somente que o retrato introspectivo de Saura se alarga para outra leitura fílmica: a dimensão política, o ponto de contato das personagens com a realidade espanhola marcada pelo franquismo. Como em outros filmes do realizador naquela época (Ana e os lobos, 1972, uma alegoria sobre a violência do franquismo), Saura aponta armas críticas para seu olhar da Espanha de seu tempo. A família descrita em Cría cuervos é endereçada para as tensões duma Espanha definida por uma disciplina totalitária e uma crueldade que se casam para limitar as ambições dos indivíduos.
O olhar de Saura é caracterizado nestes olhos graúdos e melancólicos duma Ana Torrent de nove anos de idade: a caracterização da pequena atriz como a menina que vivencia os traumas familiares e os momentos sociais do fim do franquismo talvez seja a mais impressionante interpretação duma criança na história do cinema. Saura vale-se dos olhos agudos de Ana Torrent para olhar a realidade familiar e também política de seu país; estes olhos de Ana, na estrutura de sintaxe em que Saura dá vida a seu filme, mergulham Cría cuervos num vaivém temporal-espacial que faz com que, na mesma sequência, o futuro contracene com o passado em que o passado é tanto o que aconteceu quanto o que se imagina que aconteceu. Saura complexifica esta memória temporal em construção; no começo, depois da morte do pai nos braços duma amante (ao espectador não são mostradas as imagens desta morte no sexo, mas se ouvem os murmúrios no início de desejo depois o mal-estar e pavor dos dois amantes), não sabemos se determinada conversa de Ana é contemporânea à morte do pai, só depois a aparição de Ana vinte anos mais tarde como narradora (Geraldine, a intérprete, é tanto a mãe de Ana quanto Ana adulta rememorando), é que as informações começam a casar-se, sem que o cineasta precise entregar didaticamente seu modelo gramatical, que é complexo e no entanto bem claro em suas conexões simbólicas e fusões narrativas. O jogo de acoplagem entre Ana-menina, a mãe de Ana e Ana-adulta se dá naturalmente, graças, certo, ao gênio de Saura e também à intensidade das afinidades entre Geraldine e Ana, a pequena intérprete; poucas vezes no cinema se viu desenhar uma relação mãe e filha tão profunda.
“Cría cuervos y te sacarán los ojos”, diz o ditado espanhol, que estava na boca de alguém no filme anterior de Saura, A prima Angélica (1973). Os corvos são as três meninas, principalmente a mais rebelde, Ana, que questiona sua tia, que, como irmã da falecida, quer autoritariamente substituir a mãe de Ana. Corvos arrancam olhos: é sua natureza. A pequena Ana vaga como um fantasma pelos corredores da memória: é um pouco um corvo, de sua tia a quem ela rejeita, mas também de sua avó, a paralítica muda que vive de ver velhas fotografias no lugar de tagarelar como a matriarca de Ana e os lobos. Saura lida de maneira exemplar com os espaços mentais, emocionais e físicos de Ana e os lobos. Ambientado integralmente no sombrio casarão de família no centro de Madri, Cría cuervos insere em sua montagem alguns planos exteriores agitados e ruidosos do exterior, as ruas e os trânsitos de veículos da grande cidade; as silenciosas panorâmicas laterais são ali, a espaços, substituídas por outras tensões visuais e sonoras. Dentro do rigor clássico e introspectivo de Cría cuervos, algumas escapadas para imagens do surrealismo, como aqueles três breves planos dum prato com pernas de galinhas (prontas para a panela) que aparecem quando a pequena Ana abre a geladeira. A narrativa de Cría cuervos se passa, na mansão, num tempo de férias, onde as três meninas ensaiam seus psicodramas, parodiando os adultos, nos diálogos, nas ações, nas maquiagens. No fim do filme as garotinhas são arrumadas para ir à aula: é o retorno à rotina. A imagem final captada pela câmara as mostra deslocando-se pelas ruas, logo juntando-se na multidão de escolares que retornam ao colégio. No filme seguinte de Saura, o mundo escolar virá encenado: em Elisa, vida minha (1977) Elisa, substituindo seu pai, um professor, que está doente e logo morto, monta um teatrinho de colegiais. Como aula de cinema, Cría cuervos propõe um retrato da infância que dispensa o paradisíaco, o inocente e mergulha a aprendizagem de viver no próprio cotidiano, transparente.
Observando o que seria logo a seguir, pode-se dizer que de Cría cuervos para Elisa, vida minha, os fusos narrativos de Saura se alteraram no rumo anárquico. A objetividade de Cría cuervos é em parte desmontada pela subjetividade (dentro da própria forma) de Elisa, vida minha. Sem perder (em seus limites) as perspectivas de segurança em seu estilo de filmar, Saura metamorfoseia para experimentações ainda mais ousadas sua estética da memória. De qualquer maneira, vistos lado a lado, é nestes dois filmes, Cría cuervos e Elisa, vida minha, que o espanhol Carlos Saura atinge o cume de sua arte, onde a alma humana é também uma proposta política.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br