O Circo Humano Segundo Saura
Com Mamãe Faz Cem Anos o cineasta espanhol Carlos Saura encerra a década mais exitosa de sua filmografia
Com Mamãe faz cem anos (Mamá cumple cien años; 1979) o cineasta espanhol Carlos Saura encerra a década mais exitosa de sua filmografia, os anos 70 do século XX. Retomando as personagens de Ana e os lobos (1972), feito em plena vigência do regime franquista que aprisionava a sociedade espanhola em conceitos morais e políticos tão rígidos quanto antiquados, Saura, já sem a figura do generalíssimo Francisco Franco à sua cabeceira de artista (Franco morreu em 1975 e o regime se desmontou, abrindo fendas por toda a Espanha), faz um filme mais álacre, menos tensamente dramático que suas principais obras daquele decênio, mas igualmente lúcido e desmistificador em sua crítica à hipocrisia social em que os espanhóis foram educados e da qual tardariam a retirar os grilhões (se é que lograram fazê-lo em plenitude algum dia). Como diz a personagem de Norman Brisky, que vive Antonio, o marido de Ana, a família analisada pelo filme é um circo constante: Saura diverte-se como nunca fazendo a radiografia crítica de suas criaturas; Ana, que em Ana e os lobos fora a preceptora de três meninas num casarão isolado no interior remoto da Espanha, volta (surpreendente e inexplicavelmente rediviva, pois aparentemente morrera no fim do primeiro filme), está acompanhada de seu marido, que por lascívia cede aos encantos da menina mais velha, agora crescida e sexualmente atrevida (o casamento de Antonio e Ana tumultua-se com esta inserção duma amante jovem de ocasião; lembre-se que Norman e Geraldine Chaplin fizeram um casal em Elisa, vida minha, 1977, ali ele também se chamava Antonio, ela era Elisa e discutiam dentro dum carro, também ali cometera um deslize traindo-a com a melhor amiga dela, Sofia).
O filme se abre com uma cena diante da sepultura de José, o filho militar da matriarca; a matriarca se lamenta, chorosa, cercada de duas empregadas e duas netas. E a única cena de Ana e os lobos reutilizada em Mamãe faz cem anos é uma cena de memória de Ana, aquela em que José, garboso, uniforme militar, está diante do espelho, circundado pela dedicação de Ana, até o momento em que ele se agita diante da presença dum inseto na janela, toma duma arma e dispara neuroticamente.
O circo, como aduzi, é acariciado por Saura. O filho Fernando e seu desmiolado desejo de voar, como um pássaro. Uma neta assombrada pelas leituras emaranhadas de Os irmãos Karamazov (1880), romance do russo Fiódor M. Dostoievski. O filho Juan, tíbio, fraco, e sua esposa Lucy, perversa, o verdadeiro cérebro que estimula os irmãos a matarem a matriarca para resolver logo o problema da herança. E a matriarca tagarela, magnífica composição de Rafaela Aparício, tagarelice e travessura que contrasta com a mudez e a depressão da figura da matriarca em Cria cuervos (1976), que fica espiando fotografias de um velho álbum monitorada por sua pequena neta Ana (a figura assombrosamente cinematográfica de Ana Torrent aos oito anos de idade). No plano final, após o discurso agressivo, melancólico e cínico da matriarca sobre a conduta reprochável dos seus, a câmara se afasta dum primeiro plano da velha para um plano geral do casarão. Na época se esperava que um dia Saura voltasse a seus lobos de sempre, com aquela criatividade exibida nos dois filmes e num sentido de continuação que foge às obviedades do cinema americano. Os lobos nunca mais vieram e depois os caminhos de Saura foram outros, mais inconstantes, mais duvidosos que em sua grande época.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br