A Perfei??o Estil?stica e Emocional de Saura
Cria Cuervos esta? cheio de s?mbolos claros e transparentes mas nem por isso menos misteriosos e intrigantes
Vendo os filmes alguns filmes rodados pelo espanhol Carlos Saura nos anos 2000(como O sétimo dia, de 2004), o espectador sente dificuldade em imaginar que um dia este realizador foi um dos criadores mais pessoais da história do cinema (na verdade ele é um dos criadores mais pessoais do cinema, pois o homem está vivo, e um homem é também o seu passado). O sueco Ingmar Bergman veio até o fim fazendo obras geniais, assim como o português Manoel de Oliveira e o francês Eric Rohmer; o italiano Michelangelo Antonioni mesmo muito doente desde o fim dos anos 80 deu mostras de sua soberba artística em tudo o que sua mão de cineasta tocou, o também italiano Federico Fellini pode ter desagradado em suas realizações finais mas ninguém dirá que aquilo é menos Fellini. Com Saura o fenômeno é estranho: não que ele fuja inteiramente de seu universo, mas aquele grão único de filmar se esvaiu de suas mãos com o andar da carruagem. É preciso rever um filme construído com a mais pura emoção estética, como Cria cuervos (1976), para que a velha certeza dos anos 80 se instale novamente na consciência do observador: Saura é o que há de mais profundo no cinema quando falamos da análise dos sentimentos dos seres humanos.
Segundo o próprio cineasta numa entrevista a Angel Harguindey nos anos 70, Cria cuervos nasceu da última imagem de A prima Angélica (1973), outra obra-prima daqueles anos gloriosos: uma mãe penteia sua filha diante de um espelho que é a câmara. Esta imagem que fecha a narrativa do filme anterior de Saura aparece lá pelo meio de Cria cuervos: uma mulher penteia a pequena Ana diante do espelho-câmara de Saura, no delírio de memória proposto pelo realizador esta mulher ora é a mãe de Ana, já morta e evocada pelo desejo da menina de reencontrar a mãe, ora é a irmã da mãe de Ana (a tia) que no presente da cena tem a responsabilidade de cuidar das sobrinhas (três garotinhas). Cria cuervos nasce de A prima Angélica também porque nesta película de 1973 surge na boca de uma personagem o ditado espanhol que gerará o título do filme posterior: “Cria cuervos e te furarán los ojos.”
Se o cenário da mansão burguesa em Ana e os lobos (1972), outro título expressivo da filmografia de Saura, era localizado num rincão perdido no meio do campo do interior da Espanha, esta mansão burguesa, idêntica em sua simbologia e identidade estética, aparece em Cria cuervos metido no centro urbano neurótico de Madri, com um trânsito ruidoso e uma agitação e colorido de imagem característico da grande capital; mas o curioso é que, do ponto de vista das crianças que protagonizam a trama e estão como aprisionadas naquela ambientação de castelo, a mansão é tão longe do ferver do mundo quanto aquela casa perdida no campo em Ana e os lobos, e isto confere a este cerceamento de cenário uma característica ainda mais inusitada e opressiva. Para marcar esta estranheza e seus contrastes, Saura articula na faixa sonora certos contrapontos auditivos e visuais que ele maneja com extrema habilidade formal: depois de filmar nos interiores panorâmicas sombrias e silenciosas, silêncios quebrados por canções de infância e partituras pianísticas, abruptamente ele despeja aqui e ali o olhar e os ouvidos do espectador no estridente tráfego de veículos de Madri, filmando em plano geral distanciado para caracterizar uma ambientação exterior que é a própria localização geográfica da história, a Madri turbulenta de 1975 quando o franquismo agonizava na agonia do próprio ditador Franco que estava morrendo.
Sabe-se que em Cria cuervos a naturalidade e a precisão de Saura para dirigir intérpretes infantis é tão boa tecnicamente e mais aguda psicologicamente que aquela revelada pelo francês François Truffaut em seus filmes com crianças. O ponto máximo deste encontro de Saura com a infância se dá na presença cênica da garotinha Ana Torrent, então com oito anos de idade e que havia impressionado Saura quando ele viu O espírito da colmeia (1973), de Victor Erice; Ana Torrent, com seu olhar inimitavelmente triste para desmistificar o mito da infância feliz, com sua desenvoltura diante da câmara, é certamente a mais notável caracterização duma criança na história do cinema. Ana Torrent se confunde com a própria personagem da pequena Ana de Saura, que vê o pai morrer transando com a amante, que vê a mã a mai morrer transando com a amante, que ve vimitavelmente triste para desmistificar o mito da infja com extrema habilidade foe crispar seu corpo e grunhir como bicho em sua cama de morte, que observa desorientada as brigas entre seus pais, que contesta o autoritarismo da tia apóia apnhir como bicho em sua cama de morte, que observa desorientada as brigas entre seus pais, que contesta o autoritarismo daós o falecimento dos pais e refaz o universo que observa em suas brincadeiras com as irmãs. O pai de Ana é um militar, como uma personagem de Ana e os lobos: símbolo da violência franquista o uniforme das casernas. Filmar a morte deste pai visto pelas crianças é para Saura um pouco filmar a morte de Papai Franco visto pelo povo: este, como uma criança, se aproxima do caixão e do cadáver a medo; alguns, como a irmã mais nova, precisam que alguém os erga para dar o beijo de despedida em Papai Franco.
Cria cuervos está cheio de símbolos claros e transparentes mas nem por isso menos misteriosos e intrigantes. A avó paralítica e muda é a velha Espanha que sorri das ilusões da nova Espanha, algo que é simbolizado na cena em que Ana quer ajudar a avó a morrer e lhe oferece um suposto veneno: a velha, só uma expressão de desdém e um pouco de benevolência para com as intenções incautas da neta. Uma das cenas mais estranhas e cuja estranheza nasce um pouco da persistência com que aparecem estes planos meio gratuitos mas bem encaixados (são três aparições ao longo do filme) é a visão dum prato de patas de galinhas cada vez que Ana abre a geladeira; contava Saura em entrevistas antigas que isto acontecia sempre com ele cada vez que ia à geladeira de sua casa, Geraldine Chaplin (então esposa e musa do diretor) fazia caldo com elas, esta imagem das patas mortas se fixaram na retina de Saura e ele converteu-a em um pedaço de celuloide, evocando um pouco do olhar desavisado e desviante que outro mestre do cinema espanhol, Luis Buñuel, utilizava amiúde.
Chegando a Geraldine Chaplin, que foi vista como uma avó elegante em 100 escovadas antes de dormir (2005), do italiano Lucca Guadagnino, ela na época de Cria cuervos era casada com Saura, que alguns anos depois a trocou pela empregada doméstica da casa. Geraldine, que em Cria cuervos interpreta a mãe de Ana e num primeiro plano ambientado num abstrato futuro é ela quem evoca as recordações na pele de Ana adulta, está ligada à fase mais inventiva do cinema de Saura. Parece que, separado de sua musa, pouco a pouco Saura perdeu o sangue de sua genialidade; mesmo que ele tenha realizado alguns bons filmes, como Táxi (1996) ou Tango (1998), estes estão anos-luz distantes daqueles primores que ele rodou até Doces momentos do passado (1981). Cria cuervos é, talvez só superado um tantinho por Elisa, vida minha (1977) na filmografia de Saura, um destes momentos de perfeição estilística e emocional raramente atingidos pelo cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br