As Confissoes de Ernane
Ha algo de grande copiao cinematografico nestes livros de Ernane. Quase sem cortes, quase sem montagem
Quando publiquei aqui neste espaço da internet, um texto não muito amistoso sobre o filme mineiro Confissões de Olavo (2008), exibido à socapa na hoje desativada Sala P.F. Gastal, num dos andares da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, seu realizador, Ernane Alves, vivendo nos cenários atrativos de Buenos Aires, lia o que escrevi e se interessava por aquilo, mesmo com as medidas diatribes a sua narrativa tateante. Em 2011 Ernane me incluiu nos convidados para a estreia de seu filme Palo (2011), um olhar sobre a manifestação flamenco na capital mineira; fui a Belo Horizonte, onde conheci Ernane e outras pessoas interessantes de um grupo que permitia a existência do cinema de Ernane, pois o cinema é uma arte que traz seu grau de coletividade. Do que sei de Ernane, é que se trata dum artista múltiplo e uma das personas mais vivazes e originais da cultura brasileira. Assume sempre riscos: ainda que a contrapelo dos entraves e dificuldades.
Nos últimos anos, saindo da área do cinema, pois, a meu ver, Ernane é essencialmente um cineasta, de que Causos da melhor idade (2012) é o exemplar mais bem acabado, destacando-se da problemática formal, ele tem-se dedicado a escrever livros. Tudo começou com a revelação de sua condição dentro do espectro autista e suas experiências, em diálogos com outros autistas, de diversos graus, na internet ou fora dela. O resultado são dois livros publicados, até o momento, escritos com autenticidade, correspondendo, em parte, ao lado impetuoso que já havia em seu cinema, mais interessado na autenticidade do que está sendo dito que nos cuidados formais que um olhar mais exigente quer em vão buscar.
Colapso azul (2021) põe a nu sua existência desde a infância, as relações com o pai, com a mãe, o mundo escolar, suas descobertas do mundo, o capítulo sobre a atração do menino Ernane (que se estendeu para o homem) pelo Super-homem é construído pelo escritor Ernane de maneira esteticamente criativa ao puxar a personagem do super-herói para o mundo mental do autismo. “Em determinado momento, Clark entra em ‘colapso’ (como em uma crise comum em Autistas). Incapaz de bloquear toda superestimulação (sobrecarga sensorial), ele corre para fora da sala de aula e se tranca em um armário.” Como estas realidades psíquicas existem na infância de todos nós, Colapso azul ultrapassa o diálogo único com um autista para expandir sua conversação para além do universo dos relatos: isto ocorre porque Ernane sabe achar as palavras que servem a comunicar-se com qualquer leitor.
O garoto satélite (2023), o segundo livro de Ernane, aprofunda as questões esboçadas no primeiro, menos forte emocionalmente que o que lhe sucedeu. Aqui Ernane aborda a perigosa relação do autismo com a sexualidade. A sinceridade do autor vai ainda mais longe. Os conflitos do mundo escolar, naturalmente abusivo, onde todas as diferenças sociais e íntimas são o mais das vezes exacerbadas, tornam em páginas integrais em O garoto satélite. A música e a fantasia poética têm função essencial nestes relatos dolorosamente confessionais.
Se em Colapso azul o narrador pensa “que deveríamos mastigar mais nuvens e cuspir mais poesia”, como alguém à beira das grandes pulsões, em O garoto satélite o que o leitor depara são os obstáculos da personagem, coisas “uma mais cruel que a outra”. Em O garoto satélite volta e meia a atenção do leitor, dirigida por quem narra, é deslocada das meditações e histórias passadas para os gestos cotidianos da personagem narradora no momento em que escreve suas confissões, “espere, vou tomar uma água, minha boca ficou de fato seca”.
Há algo de grande copião cinematográfico nestes livros de Ernane. Quase sem cortes, quase sem montagem. Como muitas vezes são seus filmes: sob impulso, longe de qualquer rigor formal. Haverá dificuldades na recepção em alguns setores de leitores? Que importa! Precisamos duma persona (estética, literária, cinematográfica) como esta que nos dá a ver Ernane Alves, com seu jeito que às vezes me parece um Oscar Wilde do século XXI.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br