Os Sutis Disfarces da Arte de Claire Simon
Nossos Corpos respira a vida cinematografica no centro em que muitas vezes encontramos a morte, um hospital
A primeira sequência de Nossos corpos (Notre corps; 2023) é um longo plano-sequência fixo em que uma jovem está em consulta com uma médica que a interroga: a moça quer fazer um aborto porque engravidou por descuido (não se precaveu de alguma maneira) de seu namorado. Antes desta cena, é a própria voz da diretora quem, em over, introduz seu filme sobre mulheres num hospital, mulheres às voltas com seus corpos e os problemas destes corpos: Claire Simon fala dum hospital próximo de sua casa, diz que no caminho do hospital para casa ela passa diante dum cemitério, diz que isto a inquieta, alude à doença de seu pai que por vinte e oito anos ficou hospitalizado antes de ter seu corpo cremado no fim, reforça que sua família já sabe o que é a vida de um hospital.
Em As oficinas de Deus (2008) a realizadora tratava de mulheres que, por motivos variados, estavam pretendendo fazer um aborto. Nossos corpos teve o impulso inicial de sua realização a partir da vontade de Claire de filmar os corpos de algumas mulheres num ambiente hospitalar. A cena de abertura, com a garota que quer fazer um aborto, remete a As oficinas de Deus: as relações entre o corpo feminino, o sexo e a interrupção da gravidez. O diálogo inicial entre a médica e a adolescente são bastante naturais, algo que Claire consegue apesar de as pessoas em cena saberem que estão sendo filmadas, uma construção estética do natural. Este diálogo que abre Nossos corpos guarda semelhança, por sua textura, com o diálogo duma adolescente que engravidou e quer fazer um aborto também com alguém que deverá autorizar o procedimento em Nunca, raramente, às vezes, sempre (2020), de Eliza Hittman; a semelhança dos diálogos vem da natureza das relações entre uma pessoa da saúde e outra que é paciente, daquilo que aponta entre investigação do que está acontecendo com a garota e aquilo que esta garota se propõe dizer. Como o filme de Hittman é ficção e o de Claire um documentário, esta evocação da mente do espectador vai nas águas em que as duas formas de filmar se juntam, eliminando diferenças finais. Outro dado de perplexidade dos caminhos que em Nossos corpos se vão construindo é o inesperado ao momento das filmagens. A intenção de Claire Simon, ao ambientar seu filme num hospital, é ver o comportamento do corpo feminino na doença. Consta que, no curso das filmagens, a própria diretora foi diagnosticada com câncer de mama, o que a fez sair da objetividade e embrenhar-se na perspectiva (subjetiva) daquelas mulheres que ela estava filmando.
Se As oficinas de Deus e Nunca, raramente, sempre, às vezes faziam das realidades das encenações para chegar a seu sentido da realidade, fundindo o documental na ficção, Nossos corpos vai mais diretamente ao documentário, observando as coisas de maneira ainda mais crua e seca. A informação da doença da própria diretora só aparece no plano final para o espectador: numa voz-over, como no início, agora ela aduz que, ao terminar as filmagens, se concluíra também seu tratamento do câncer.
Filmando partos em bruto, confissões sinuosas de doentes, testes de fertilidade, doenças, diálogos entre médicos e pacientes, Nossos corpos respira a vida cinematográfica no centro em que muitas vezes encontramos a morte, um hospital.
P.S: O filme analisado foi visto no Festival do Rio, em outubro de 2023. Ainda está inédito em Porto Alegre.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br