O Desejo Fsico Que No Fsico
O Joelho de Claire o quinto conto cinematogrfico da srie de seis contos morais
O diretor francês Eric Rohmer tem quem ame seus filmes e quem resmungue deles. Os que os amam percebem bem porquê. Os que emitem um muxoxo diante da descoberta (geralmente tardia) de um filme dele, gemendo “ora bolas!”, geralmente se espantam perguntando-se por que historinhas tolas são convertidas por alguns em reflexões filosóficas (de onde estariam tirando isto, questionam as rabugens). A culpa é de Rohmer, para que negar. O joelho de Claire (Le genou de Claire; 1970), talvez sua realização mais famosa, porém obscura em termos de aparecimento numa arte, como o cinema, e cada vez mais, onde o barulho, ideológico ou visual, é o que parece contar para o definitivo e permanente, é um bom ponto de partida para espiar esta culpa rohmeriana, coisas de um artista arteiro como Rohmer: como ele vai transformando as obsessões bobas das personagens num texto quase pascaliano, induzindo o espectador (que se interessa) a mergulhar na filosofia (ainda que cotidiana) e aquele que se agasta a pensar que é mesmo só um roteirinho tolo para um fim de verão. Na verdade, visto tantos anos depois, amadurecendo o que se viu por aqui na juventude no fim dos anos 70 (sessão inicial no Cinema Um, Sala Vogue, na avenida Independência, no ano seguinte o ciclo do Bristol dos melhores do ano, programado por Romeu Grimaldi) e o que se pôde reavaliar ao longo dos anos até visões deste começo do século XXI, Rohmer parece estar o tempo todo brincando com isto, o banal diário e a meditação exacerbada deste banal —como em todos os seus filmes.
O joelho de Claire é o quinto conto cinematográfico da série de seis contos morais que Rohmer, em determinado momento, projetou para a estrutura de sua obra. Quase como numa tragédia grega, há personagens que formam as vozes narrativas-sobre na história que vai ser contada. Em O joelho de Claire estas personagens são duas. Uma delas é a romancista Aurora; ela recebe, em sua residência de campo, à beira do lago Annecy, nas belas paisagens da fronteira da França com a Suíça, seu amigo Jerôme, um diplomata, também com veleidades literárias. Percebendo a atração da adolescente Laura, filha duma amiga, por Jerôme, Aurora, provocadora de histórias que quer contá-las, passa a induzir Jerôme a aceitar o jogo de Laura. Isto de fato acontece: Jerôme se enleia um pouco com Laura, mas logo ambos se cansam deste jogo, e Jerôme se desvia para uma outra personagem que aparece, Claire, meia-irmã de Laura, dois anos mais velha que esta. Ao saber do novo flerte, Aurora, a provocadora, contadora, se excita com a proposta desviante de Jerôme, auxiliando-o a compor esta segunda história. Esta outra proposta de conduta sentimental de Jerôme tem seu ponto mais agudo quando o madurão, observando Claire a ajudar o namorado a colher frutas da estação, dá com o joelho da magra e jovem garota trepado numa escada. A partir deste instante, aquele desejo que Aurora define, a certa altura, como “un désir certain mais sans but”, invade o próprio íntimo da personagem e a própria estrutura, tão maliciosa quanto profunda, do filme. Jerôme e Aurora são criaturas que se narram a si mesmos; as demais —as duas meio-irmãs, o namorado de Claire, o amiguinho de Laura, a mãe das meninas— são narradas por Aurora e Jerôme como peças duma delícia mental.
A primeira que aparece é Laura. Aurora, Jerôme e Madame Walter (a mãe das meninas) estão sentados, conversando, e, aproximando-se uma garota, a mãe diz: “C’est Laura. Ma fille.” Mais adiante, Claire vai aparecer primeiramente sob a forma dum retrato. Aurora, numa peça da casa, diante do retrato duma moça, diz para Jerôme: “C’est Claire. C’est l’autre fille.” Laura tem problemas temperamentais com a mãe. A mãe, por exemplo, não gosta de viver ao pé da montanha, como à borda do lago de Annecy, “parce que m’inquiète”. Laura, para variar, retruca, pensa que é mais interessante ver a montanha de baixo, “c’est comme un berceau”. Laura se revela no filme bem mais que Claire: expressa-se mais, o que é chave num filme de Rohmer. Por exemplo, ela é muito clara ao dizer que não se dá bem com os jovens, “je n’aime pas les gens de mon âge”, nota-se isto depois, então ela procura um madurão como Jerôme. Este solta-se com Laura, comedido, pois há uma noiva, distante e ausente de cena, Lucinde. O interesse posterior por Claire é mais complicado, pois ela está bem afeiçoada ao namorado: “Elle t’intimide”, “elle” no caso é Claire, sentencia Aurora para Jerôme analisando o andar dos acontecimentos. O joelho de Claire e finalmente, num dia de borrasca, em que Jerôme fofoca para Claire sobre uma possível traição de Gilles, o namorado, o toque lento e demorado no joelho, a mão de Jerôme deslizando por aquele objeto corporal sutil, parece estarmos muito mais diante dum toque espiritual num espaço físico. Nas aproximações anteriores a Laura, Jerôme confessa a Aurora que o faz muito mais “pour te faire plaisir”, a história é de Aurora, Jerôme comporta-se para agradar à amiga. No caso de Claire, reiteremos Aurora falando com Jerôme, “elle provoque en toi un désir certain mais sans but”. A história do joelho, esta sim, é de Jerôme. E acaba sendo a do próprio filme de Rohmer. O desejo de Jerôme por Claire é preciso (certeiro) porém sem finalidade (objetivo): o joelho da garota materializa um objetivo inventado. Assim como o próprio filme O joelho de Claire: nada além daquele joelho senão banalidades. Ainda Aurora, sempre um sopro no ouvido de Rohmer: a história do joelho por Jerôme é “charmante mais anodine”; antes que qualquer um, antes dos encantados e dos resmunguentos, Aurora escalou as posições cinematográficas diante desta e de outras histórias de Rohmer ao longo dos anos, “charmante ou anodine”.
Do elenco. Jean-Claude Brialy, que vive Jerôme, é bem conhecido ator da “nouvelle vague”. Tem uma interpretação intermediária entre o estudado de Aurora Cornu e a naturalidade dos jovens. Aurora Cornu está definitiva como o ente de ironia reflexiva que é a escritora amiga de Jerôme em busca duma história inspirada na realidade circunstante. Béatrice Romand como Laura desprende-se narrativamente como poucas vezes se viu em filme. Fabrice Luchini, interpretando o amiguinho de Laura, Vincent, já revela em sua juventude o lado travessamente talentoso de sua persona fílmica. Laurence de Monaghan, na pele de Claire, é, para usar da duplicidade adjetiva de que se valeu Aurora para evocar a cena do toque no joelho na borrasca, “escultural e pictórica” como convém. E coadjuvam bem Michèle Montel como a mãe das moças e Gérard Falconetti como Gilles, o namorado de Claire (este ator, neto de Renée Maria Falconetti, a mítica intérprete de A paixão de Joana d’Arc, 1928, a obra-prima de Carl Theodor Dreyer, faleceu prematuramente em 1984, aos 35 anos de idade).
(e-mail: eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br