O Cinema Nascido da Vida

Cristiane Oliveira faz filmes que retiram sua forma de filmar da realidade filmada

21/10/2024 20:31 Por Eron Duarte Fagundes
O Cinema Nascido da Vida

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Cristiane Oliveira faz filmes que retiram sua forma de filmar da realidade filmada. Nascida em Porto Alegre, capital gaúcha, suas narrativas têm percorrido etnias e cenários diversificados em seus três filmes realizados até aqui. Até que a música pare (2023), seu mais recente trabalho, vai à região de colonização italiana, na serra gaúcha, especialmente na cidade de Antônio Prado, não nominada no filme, senão nos créditos como um local de filmagem. Antes ela fizera na fronteira entre o Brasil e o Uruguai Mulher do pai (2016) e em Osório, entre as monumentais antenas eólicas, rodara A primeira morte de Joana (2021). No entanto, há uma coerência estética nestas aparentes divagações geográficas de Cristiane pelo estado em que nasceu; surge o paradoxo: os conflitos humanos vistos pelos roteiros (o pai cego e a filha que descobre o mundo, a adolescente que descobre seu universo emocional e erótico à evocação das reminiscências familiares duma tia-avó, os estudados dilemas conjugais e sociais dum casal de idosos) poderiam, em princípio, ser retirados daquele contexto geográfico e passar-se em qualquer lugar do mundo, Porto Alegre, Rio ou Paris. Mas não seria o mesmo filme. Como observar o que se passa entre as personagens de Até que a música pare sem a natureza religiosa particular daqueles italianos do sul do Brasil? Como ver este filme abstraindo os costumes da região, ainda que formalmente a plasticidade de encenação der Cristiane crie um rigor quase abstrato? E, implacavelmente, como imaginar Até que a música pare sem a inserção do talian, língua do local que mistura dialetos italianos com o português? Ao falar de seu filme, Cristiane, na exibição não-comercial da Sala Eduardo Hirtz, em Porto Alegre, lembrou que, ao colher a história, chegou a cogitar retirá-la dali, poderia filmar em outro cenário; mas logo viu que haveria uma falsificação, logo viu que a história estava arraigada aos costumes de um cenário e de algumas pessoas.

Talvez mais lento que suas obras anteriores, detendo-se em longos planos fixos que tornam as coisas contemplativas e abstratas na forma de olhar, Até que a música pare exige do observador uma reeducação do olhar para o cinema. Apesar de sua estaticidade da imagem (ou do enquadramento, ou da montagem mesmo), Até que a música pare é um filme de estrada, está sempre em movimento de cenários; mas é um movimento tão interior e íntimo que em momento algum parece um deslocamento contínuo: olha-se um novo cenário mas o olhar permanece fixo, na hipnose de cores, sombras, invisíveis movimentos internos da imagem.

Em conjunto, os três filmes de Cristiane apresentam uma constância em sua estética: a capacidade de unir sua aguda e criativa direção de atores (Ermano Olmi, talvez) com uma plástica do senso cinematográfico que conduz muitas vezes a uma inesperada ascese dentro do cinema do cotidiano, aquele cuja linguagem nasce da vida.

P.S.: Em certos aspectos, especialmente numa certa caracterização do comportamento religioso como uma especificidade dos descendentes de italianos no sul do Brasil, o trabalho de Cristiane Oliveira se aproxima, por coincidência, de algo que fez Janete Kriger no filme curto A sagração do cotidiano, benzeduras, com roteiro da escritora Alessandra Rech, também rodado na região de colonização italiana de nosso estado. É claro que Kriger, habitante de Caxias do Sul, filma o processo de dentro. Cristiane o filma de fora mas sua autenticidade é idêntica porque ela tem a sensibilidade cinematográfica de fazer o movimento para dentro.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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