O Palco na Tela: Rigor e Despojamento Cinematograficos

O Diabo na Rua no Meio do Redemunho despoja-se em sua linguagem do barroco a deriva de Guimaraes Rosa

20/09/2025 03:09 Por Eron Duarte Fagundes
O Palco na Tela: Rigor e Despojamento Cinematograficos

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Para a austro-gaúcha Kathrin Rosenfield (autora de Os descaminhos do demo: tradição e ruptura em Grande sertão: veredas, 1993), para minha patrícia caxiense Alessandra Rech (que escreveu as iluminações de Na entrada-das-águas: amor e liberdade em Guimarães Rosa, 2010) e para o mineiro Silviano Santiago (que dedicou as páginas de seu extraordinário Genealogia da ferocidade: ensaio, 2012, ao sertão de Rosa).

 

 

O filme O diabo na rua no meio do redemunho (2023), dirigido por Bia Lessa a partir dum roteiro que apanha relâmpagos de Grande Sertão: veredas (1956), romance de experimentações linguísticas, sintáticas, narrativas de João Guimarães Rosa, é uma abstração. Seu universo é atemporal. No que diverge de Grande sertão (2024), dirigido por Guel Arraes, que se esforça pela contemporaneidade dentro dos arcaísmos de Rosa. Lessa mergulha nos arcaísmos vindos da literatura endossando-lhes o que há de abstrato. Oriunda do teatro, onde ela dirigiu uma peça extraída do romance, a realizadora usa a contenção do espaço teatral (pouca amplitude, cenários vazios, exigência para com o ator) dentro da montagem cinematográfica. O rigor e o despojamento de direção são máximos, e exigem do espectador, o que é natural em se tratando duma adaptação de Grande sertão, livro que exige de seu leitor e exige o leitor, aquele leitor. O diabo na rua no meio do redemunho é constantemente um estímulo neuronial para quem está na sala escura do cinema. Rosa está lá, com seu texto deslumbrante e inconformista, mas estão lá também os planos-relâmpago de imagens que no princípio algumas  imagens abstratas logo se convertem num drama de luz e contrapontos visuais poderosos, lá estão os intérpretes, Caio Blat com sua grandiloquência melodramática, Luisa Arraes tensa e sensual, e mais que todos a construção cênica surpreendente de Luiza Lemmertz.

A complexidade do universo rosiano é captada pela sensibilidade de leitora-diretora de Bia. Nos créditos, se diz que o filme é “calcado em Grande sertão: veredas”. Calcar: uma forma nova que corresponde às relações artísticas de Lessa, misturando literatura, teatro, uma exposição e chegando densamente ao cinema. O universo espremido. Caio e Luisa Arraes são Riobaldo, em seu duplo homem-mulher que se apaixona por alguém que se traveste de jagunço, Reinaldo. Este Reinaldo, que depois se revelará Diadorim, é uma mulher que faz de homem no universo áspero do sertão; Luiza Lemmertz dá-lhe as mutações no feminino-masculino com algo próximo da bravura estética. Luisa Arraes é também outros seres, como a meretriz Nhorinhá: a  atriz, que foi Diadorim na versão de Guel Arraes, neste filme de Bia surge a espaços como uma assombração do sertão recriado em palco.

Num ensaio sobre o romance, Silviano Santiago anota: “Há um esbanjamento desgovernado, ardiloso e homicida das forças selvagens e telúricas pelo manuseio da palavra-moeda. Encenam-se lembranças e mais lembranças no palco literário.” (In Genealogia da ferocidade, 2017). Palco: o palco de Rosa é literário, teatral e cinematográfico. O diabo na rua no meio do redemunho despoja-se em sua linguagem do barroco à deriva de Rosa ao mesmo tempo em que o adota como estímulo visual-sonoro de suas divagações.

 

(Eron Duarte Fagundes — eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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