O greco-francês Constantin Costa-Gavras é um mestre do cinema, todos o sabemos. Famoso por sua capacidade de transformar em espetáculos  fílmicos a aridez dos temas mais diretamente políticos, em obras-primas como Z (1968) e Desaparecido, um grande mistério (1982), fusão estética que foi vista por alguns com esnobação crítica em seu tempo, época em que o franco-suíço Jean-Luc Godard bradava que mais importante que fazer filmes políticos era fazer politicamente os filmes, Gavras tem em seu mais recente trabalho um novo desafio para seu estilo de filmar, onde se misturam uma tranquila severidade do olhar sobre o mundo com uma afetividade íntima que o humaniza profundamente: Uma bela vida (Le dernier soufle; 2024) se  insere numa discussão sobre a vida em seus momentos finais quando o sofrimento tem o impasse médico de prolongar-se infinitamente ou ser abreviado com os recursos disponíveis. Em Está tudo bem (2021) o francês François Ozon contemplou o assunto da eutanásia, assim como o espanhol Pedro Almodóvar em O quarto ao lado (2024). Gavras aborda as coisas a seu modo: sem a espécie de emotividade intelectual de Ozon ou os passos sombrios típicos de Almodóvar, em Uma bela vida os detalhes e os encaminhamentos são outros, e se circunscrevem na maneira de expor a emoção cinematográfica que há em todos os filmes do cineasta, desde os antigos, com suas grandezas e problemas dramatúrgicos habituais.

Dois atores em atuações extraordinárias, o francês Denis Podalydès e o franco—argelino Kad Marad, dominam a narrativa de ponta a ponta. Denis interpreta um escritor-filósofo que se interessa pelos tratamentos paliativos que se dão a doentes terminais e irreversíveis. Marad vive o médico-chefe duma destas clínicas da morte paliativa. A origem do roteiro é um livro de Régis Debray e Claude Grange. Observando diversos casos destes tratamentos, os pacientes, os médicos, as famílias dos pacientes, dando uma visão coral da humanidade nestes casos, a confluência de Uma bela vida vai pôr em xeque o escritor-filósofo quando um belo dia ele é confrontado com um inesperado exame de rotina que lhe descobre  a mancha de um câncer e o encaminha para esta vida final paliativa. É então que Fabrice, o pensador que se interessa pelos outros nos instantes em que sabem que tudo o que fazem é um encaminhamento para a morte, vai viver a prática de suas teorias.

Aos 92 anos, ainda fisicamente capaz de fazer um filme, com todos aqueles esforços de produção e gerenciamentos que cabem a um diretor, Gavras revela em Uma bela vida a consciência de que saúde e doença, vida e morte se movem entre nós como um tênue fio, muitas vezes invisível, aqui e ali de incômoda visibilidade.

(O título brasileiro, “uma bela vida”, tenta engambelar o espectador. O austero título no original francês, “le dernier souffle”, não engana ninguém: alude sem hesitação àquilo de que falará, o derradeiro sopro. Luis Buñuel, outro mestre do cinema daqueles anos, deu, ou seu escritor de sempre, Jean-Claude Carrière, à sua autobiografia um título parecido, “mon dernier soupir”, era uma visão de sua vida e obra como um “último suspiro”. Em ambos esta visão de que, entre sopros e suspiros, vamos vivendo. Até o fim: que surge de várias maneiras.)

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)