Pelas Ruas de São Paulo, o Intelectual-Mendigo

Nos longos primeiros movimentos de câmara de Fome, de Jean-Claude Bernardet, o que o espectador acompanha é a silenciosa andança do mendigo pelas ruas da grande metrópole

09/09/2016 22:54 Por Eron Duarte Fagundes
Pelas Ruas de São Paulo, o Intelectual-Mendigo

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Jean-Claude Bernardet, belga de nascimento, no Brasil desde a adolescência, interpreta um mendigo andarilho pelas ruas de São Paulo, em Fome (2016), o novo filme de Cristiano Burlan, um diretor de cinema que nasceu em Porto Alegre, mudou-se com sua família em menino para o estado de São Paulo e hoje faz um cinema paulista bastante característico em suas tensões urbanas formais, informais e temáticas.

Nos longos primeiros movimentos de câmara de Fome o que o espectador acompanha é a silenciosa andança do mendigo pelas ruas da grande metrópole sul-americana. Nenhuma palavra salta em cena. Na faixa sonora, unicamente os sons de ambiente: o ranger do carrinho do mendigo nos calçamentos, os ruídos dos automóveis em torno, um ou outro burburinho humano que pode aqui e ali cercar a personagem que circula. É como se o italiano Michelangelo Antonioni baixasse  da burguesia italiana para a ralé brasileira: uma espécie de metafísica de nossa miséria nacional. Walter Hugo Khouri ressuscitou, misturou-se com Ugo Georgetti, mas o produto não é uma fusão, é outra coisa. A originalidade de Cristiano Burlan se salienta no cimento paulistano.

Há uma perplexidade inicial do observador neste caminhar incessante do mendigo Bernardet para lugar algum. Temos a impressão de que haverá um deslocamento eterno e sem sentido. Mas o pleno rigor formal fotográfico e plástico agora atingido por Burlan preenche indelevelmente os olhos. É um documentário duma ação inventada para Bernardet, andar e andar pelos cenários da cidade? Vai surgir alguma ação que explique a personagem e crie situações de ficção? Enquanto o fascínio da imagem nos desce pelos olhos, pensamos nisto, nas possibilidades do filme, dentro de nós parece que o filme insta numa espécie de ajuda de construção: obra em aberto.

Lá pelas tantas, uma ruptura. Uma repórter passa a entrevistar moradores de rua que, dizem, são de verdade. O documentário anterior (os passos de Bernardet para nada) dá lugar a um documentário aparentemente mais autêntico, os mendigos falam de sua vida para a câmara. A palavra substitui o silêncio anterior, sublinha os ruídos anteriores. Bernardet é então um mendigo entre outros. E a repórter chega nele: ao entoar uma canção que evoca um general que se foi para a guerra e não sabe se voltará, o mendigo de Bernardet é batizado pela repórter com o nome de Malbou, o general da canção. Mais adiante, ao topar um estudante, a persona de Bernardet se intromete em sua vivência de mendigo: o mendigo de Bernardet é um ex-professor universitário, que escrevia sobre cinema, e que caiu na mendicância, desiludido ou delirante. Bernardet pode estar deixando de escrever para ser ator —ou um mendigo. Talvez seja uma associação demasiado fácil, mas a ela não se pode resistir: desprovido de importância no mundo de hoje, economicista, materialista cada vez mais, o intelectual de sensibilidade é um pobretão, está destinado às ruas, seu manicômio.

Cristiano Burlan é um homem das classes humildes do país que tem feito filmes de grande feição crítica. Sob a aparência dum relato trágico familiar, Mataram meu irmão (2013) é uma visão multifacetada de nossos meios suburbanos. Em Hamlet (2014) ele filmou uma falsa encenação da peça de Shakespeare na São Paulo de hoje; e foi o primeiro uso que fez das possibilidades de ator de Bernardet. São dois filmes cheios de ensaios que preparam o salto no abismo que é Fome, uma incursão nos meandros das relações entre o intelecto elevado e as porosidades da carne que sofre solta nas ruas.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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