O Furor da Linguagem

A crônica histórica de Sinval Medina se afasta bastante das crônicas contemporâneas

28/07/2014 10:10 Por Eron Fagundes
O Furor da Linguagem

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

A linguagem utilizada pelo romancista gaúcho Sinval Medina em O cavaleiro da terra de ninguém (2012) é preciosa, foge dos lugares-comuns vocabulares e sintáticos, mas em nenhum momento se ridiculariza ou ridiculariza o poder inventivo desta linguagem fora de moda. Medina escreve como se fosse um cronista antigo: lembra em parte os nordestinos Ana Miranda e João Ubaldo Ribeiro, porém seu acento sulista o diferencia para um lado talvez mais sisudo ou sombrio (influências do pampa sobre a linguagem?).

A crônica histórica de Medina se afasta bastante das crônicas contemporâneas (um fato antigo lido em linguagem do século XXI) do peruano Mario Vargas Llosa  em O sonho do celta (2010) e do gaúcho Juremir Machado da Silva em Jango, a vida e a morte no exílio (2013). Medina compõe como um antigo, apesar da modernidade de seu olho linguístico. Llosa é o romancista clássico; pega duma pessoa que de fato existiu e borda sua imaginação em torno dos dados que arrecada. Em linhas gerais Juremir, em seu Jango, dá como nunca vazão ao jornalista dentro do romancista: no fundo Jango apresenta, disfarçada de romance (histórico e político) a estrutura duma grande reportagem de época Como em Juremir, no texto de Medina sobressaem as informações históricas obtidas pré-narrativa; desde o prólogo, quando o narrador associa o terremoto (melhor: terramoto) ocorrido em Lisboa a primeiro de novembro de 1755 com a morte, em 21 de novembro do dito ano, de Cristóvão Pereira de Abreu, o tropeiro português do sul do Brasil cujas aventuras obscuras se narrarão nas páginas seguintes.

Volta e meia o narrador intentado por Medina se intromete na própria narrativa, que acaba evitando aquela objetividade flaubertiana de Llosa. “De certeza sabemos que dom Cristóvão, ao retirar-se da Colônia de Sacramento em 1705, enfrentou um tempo de vacas magras.” “Vim a saber que era viúvo”. No caso do romance de Juremir esta objetividade é destruída pela multiplicidade de vozes entrevistadas. Mas parece que Medina vai mais longe ao fundir os discursos, o direto e o indireto. Libérrimo, o indireto, às vezes. “Eh lá, seu Jerônimo. Vejo que a vida no deserto soltou-lhe a língua e, ao que parece, também afetou o juízo. Então isso lá é conversa de homem que preza o próprio pescoço? Abra o olho, meu amigo. Do contrário, com tal paleio acaba enterrado em algum infecto aljube. Que esperança, patrão. No refúgio em que me encontro, estou livre de esbirros, beleguins e aguazis, para não falar de majestades sereníssimas, fidelíssimas ou o raio que as parta.” Sem travessões, como entre nós, e sem aspas, como nos diálogos em inglês. De uma certa maneira, e de maneira agudamente diferente, estes blocos inteiriços em que se juntam todas as vozes já estavam no mineiro Autran Dourado, o mestre de todos nós.

Se eu fosse eleger um trecho da prosa de Medina em que a articulação sintática e vocabular sempre buscada pelo narrador atinge seu posto mais sinuosamente criativo, está na página 40 desta primeira edição da Prumo, que começa assim, “com tal disposição, passa batido pelo corpo da guarda”, fala em “renque de tocheiros ainda não alumiados”, utiliza o vocábulo “botelha” de pouco uso nas cidades por aqui (preferimos o termo “garrafa” para qualquer recipiente congênere; em francês parece dar-se diferentemente, usam mais “bouteille” que “carafe”), enfim o texto vai concluir-se com “o fato é que pouco desfruta o governador da rica adega, contentando-se no passado diário com o vinho de cheiro produzido nos arredores por chacareiros açorianos.”

O fingimento ficcional de Medina, que transforma sua crônica jornalística num romance (assim como em Jango, a crônica jornalística cola no esqueleto do romance), tem seu último lance simulando uma espécie de relatório oficial, carta a uma autoridade, a autoridade leitor quem sabe. Conclui Medina: “E nada mais havendo a tratar, dou por encerrada a tarefa de relatar, na medida do meu parco engenho, a vida, a obra e os tempos do Cavaleiro da Terra de Ninguém, dom Cristóvão Pereira de Abreu. Muito obrigado pela atenção e consideração. O autor.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha
Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro