Um Romance Como Personagem

Estevao, o romance de Andr Caramuru Aubert, termina em um tom sutil e agudo

10/12/2021 17:10 Por Eron Duarte Fagundes
Um Romance Como Personagem

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Estevão, uma das personagens do romance Estevão (2021), de André Caramuru Aubert, está escrevendo um romance, Estevão, cuja figura central é um indivíduo de outros tempos cujo nome é igualmente Estevão; superposição de camadas homônimas, romances e personagens. Este romance dentro do romance se descortina ao leitor em estilhaços; nós o imaginamos (porque não o apreendemos senão em partes isoladas) uma biografia, ou um relato histórico, ou ainda uma aventura antropológica, gênero múltiplo à semelhança de Os sertões (1902) citado no livro de André como uma das admirações do romancista dentro do romance. A personagem do romancista Estevão vai encenar os primeiros movimentos do livro de André trilhando as regiões afetivas. O começo da narrativa capta uma hesitação. “Às vezes Estevão lamentava ter se divorciado, às vezes não.” A ex-mulher, Simone, é então uma presença-ausência. Mas havia nele a consciência de que a vida de solteiro era melhor. Com domínio dos recursos narrativos, André faz o desenho agudo desta interioridade da personagem, valendo-se da sensibilidade de escritor para fazer dissolver na fala do narrador onisciente o discurso indireto livre. A vida de solteiro seguia melhor; mas no início do livro (que vai evocando alguma coisa dos últimos anos de solteiro) aparece uma nova mulher que põe em xeque a solteirice de Estevão. “E a culpada disso tinha nome: Juliana.” No entanto, depois de falar da ex-esposa, da nova namorada, Estevão, o romance que se está lendo, apresenta algo que vai dar outro tipo de complexidade às relações de Estevão com Simone e Juliana. “A realidade é que o grande nó em sua vida recente era o livro. Estevão.” Quatro personagens: Estevão, Simone, Juliana e o livro dentro do livro, Estevão. Os dados estão lançados pelo romancista André. Ao final do primeiro capítulo, um acontecimento parecido com acaso embaralhará os dados. É a partir deste fato posto um pouco para sublinhar as relações de Estevão com as duas mulheres e alterar o destino da própria quarta personagem, o romance Estevão que o Estevão criado por André está escrevendo, é a partir daí que começa a acontecer a verdadeira trama que vai interessar o leitor.

O procedimento narrativo de pôr um romancista dentro do romance tem alguns exemplares clássicos na literatura. O francês André Gide pôs no seio de Os moedeiros falsos (1926) a criatura de nome Edouard, que lá pelas tantas anota: “Despojar o romance de todos os elementos que não pertençam especificamente ao romance.” Clarimundo, um professor, usa as vestes de romancista em Caminhos cruzados (1935), de Erico Verissimo, e no fim chega a meditar: “A vida, prezado leitor, é uma sucessão de acontecimentos monótonos, repetidos e sem imprevisto. Por isto alguns homens de imaginação foram obrigados a inventar o romance.” André, homem do século XXI, se situa muito longe destas antigas ingenuidades (intelectual em Gide, emocional em Erico); mais que o romancista Estevão e suas inquietações de escrita é o romance Estevão,e seu processo de construção, que surge como a personagem que determina os rumos narrativos do romance de André.

Estevão, talvez um romance histórico dentro do romance contemporâneo Estevão, é quem vai ditar as regras das relações entre as outras três personagens centrais. Desafiando-as a decifrá-la como a um enigma (se não, te devoro), a personagem-romance se constrói ao longo do romance de André, em fragmentos que propõem densidade, algo assim como um segundo romance que o escritor bem poderia querer escrever mas do qual dá a ver somente alguns momentos; como toda personagem, esta personagem-romance vive da capacidade do romancista de, na ligação entre as partes que vão compondo a criatura, estabelecer uma invisível complexidade de conexões. Em alguns instantes este lado complexo torna-se bastante visível. “Naquele momento, ali, na sacada da Galeria Metrópole, olhando para fora, para o lado esquerdo, em direção à Biblioteca, naquele fim de tarde tão lindo, Juliana desejou que o tempo parasse, e, pelo menos por alguns instantes, se esqueceu um pouco de todo o resto, até mesmo, brevemente, de Stefano, e foi plenamente feliz.” Stefano, o filho de Juliana, não é propriamente uma personagem: é uma alusão.

Estevão, o romance de André, vai terminar no mesmo tom sutil e agudo, disfarçadamente despretensioso, com que começou. Ao longo da narrativa, o narrador inseriu, com grande clareza, os diálogos no corpo do discurso onisciente e também ali junto os discursos indiretos, eliminando travessões, transcrições diretas das falas; no entanto, estas misturas de vozes são extraordinariamente objetivas, em nada lembram as longas divagações de Marcel Proust ou as experiências de linguagem de James Joyce, estão ainda mais próximas de Gustave Flaubert, apesar dos processos diversos de narrar. O romance dentro do romance se conclui também com simplicidade e agudeza: “E, ao longe, o céu, o campo, as pedras brilhando ao sol da Serra dos Cristais, as nuvens.” Este romance-dentro teve uma escrita a seis mãos: Estevão, Simone e Juliana. Ao contrário dos romances antigos que citei nos começos deste comentário e voltarei a referir, André soube retratar um ficcionista sem o peso da ficção: a escrita se enleia com outros aspectos da vida. No último movimento do livro é Simone quem está falando e a personagem-alusão, Stefano, o filho de Juliana, reaparece para dar entrada no que vem depois, o que poderia ser um outro romance.

No final de Caminhos cruzados o narrador de Erico escreve: “Clarimundo pinga o ponto final com entusiasmo.” Clarimundo, a personagem, conclui seu romance. Nos últimos trechos de Os moedeiros falsos Gide constrói um trecho do diário de Edouard, o romancista, e assim vão suas últimas frases: “Deveremos nos rever amanhã à noite, pois Profitendieu convidou-me para jantar, juntamente com Molinier, Pauline e os dois meninos. Estou bastante curioso para conhecer Caloub.” Ao concluir Estevão, o narrador de André diz: “Lá pelas quatro da tarde, as duas deram por encerrado o trabalho.” O trabalho: terminar a montagem/escrita que Estevão deixara inconclusa; Simone e Juliana respiram. Juliana diz que vai levar Stefano ao cinema, ver um desenho animado novo. Então, Simone: “Posso ir com vocês?, perguntou, então, Simone. Todo esse tempo em que temos trabalhado juntas, e dá para acreditar que ainda não conheci o Stefano?” Estevão, o romance de André, começa falando dum divórcio e termina falando duma criança, um filho. Nem o divórcio nem o filho ocupam bem a narrativa de Estevão; entre as duas referências extremas (o princípio e o cabo), se movem outros liames que se podem identificar na estrutura romanesca de Estevão, cujo ritmo de música de câmara tem muitas vezes a precisão dos ponteiros de um relógio — sem descaracterizar os aspectos vitais e emocionais que necessariamente orientam um processo ficcional raro como este de André Caramuru Aubert.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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