O Romance ?brio: Ou o Pr?-Romance

Jacques le Fataliste et Son Maitre eh um dos embrioes de algumas coisas que Machado de Assis faria no Brasil em sua melhor fase

10/12/2022 12:49 Por Eron Duarte Fagundes
O Romance ?brio: Ou o Pr?-Romance

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A publicação em livro de Jacques le fataliste et son maître se deu postumamente, em 1796. Seu autor, o francês Denis Diderot (1713-1794), ia escrevendo ao correr da pena (e dos dias), inspiração natural (ou instintiva), pequenas minúcias de escrita e composição como exercícios ou apontamentos. Em vida de Diderot, o texto foi publicado em folhetim (outro hábito do século e que no seguinte, o século XIX, ganhou foros de edificação do romance como um gênero em si, então já com certas regras estabelecidas) entre 1778 e 1780. Esta forma fragmentária, sem uma revisão final para o conjunto, determina a própria estrutura de Jacques le fataliste, que se vai compondo num legítimo passo a passo onde as cenas deságuam umas nas outras com absoluta liberdade. O que no tempo de Diderot era espontaneidade de escrever (aquelas chamadas constantes ao hipotético leitor e as divagações sobre as próprias soluções de texto que o narrador (ou autor) trazia para as páginas, se tornou na posteridade algo revolucionário diante do comum dos romances que vieram em seguida, excessivamente abotoados, no romantismo mas também no realismo-naturalismo. Claro que uma leitura atual do verbo de Diderot, especialmente no original francês, não deixará de topar a qualidade instintiva de contador de casos que sai do próprio espírito de escrever ali exposto; mas é uma espontaneidade com as centelhas da criação que poucas vezes a literatura narrativa soube encontrar.

A unidade deste romance ébrio (em que os passos do narrador são sempre surpreendentes) se dá pela presença constante das duas personagens centrais, Jacques e seu amo, cujos diálogos costuram as multifacetadas histórias que eles próprios e outras criaturas (como uma hoteleira duma casa de hospedagem em que eles a certa altura se acham) vão pondo diante do leitor. Neste aspecto, a duplicidade de ações de Jacques e o amo é uma citação, modificada, a Dom Quixote de la Mancha (1605), do espanhol Miguel de Cervantes, com o tosco Sancho Pança e o delirante Quixote. Jacques não é Pança. O amo diz a Jacques: “Jacques, vous êtes une espèce de philosophe, convenez-en.” Mais adiante, o amor avança no exagero, aproximando seu acompanhante subalterno a outro Jacques, este sim um pensador, Jean-Jacques Rousseau.

Jacques le fataliste et son maître é um dos embriões de algumas coisas que Machado de Assis faria no Brasil em sua melhor fase. Um dos recursos de Diderot neste livro é a conversação irônica com o leitor, interrompendo o curso narrativo. O narrador parece algumas vezes resmungar com o leitor: “Lecteur, vous me traitez comme un automate, cela n’est pas poli.” Outra aventura estética proposta em Jacques le fataliste tem uma natureza claramente machadiana, para quem se criou no seio da literatura brasileira: duvidar se o que se vê escrito é um romance ou sabe-se lá o quê (aqui remeto meu leitor aos passos iniciais de Memórias póstumas de Brás Cubas, 1881). “Il est bien que ne fais pas un roman, puisque je néglige ce qu’un romancier ne manquerait pas d’employer. Celui qui prendrait ce que j’écris pour la vérité serait peut-être mains dans l’erreur que celui qui le prendrait pour une fable.” Machado, como homem culto brasileiro do século XIX, foi grande leitor dos franceses, em francês. As assombrações de Diderot nos romances do brasileiro, na segunda fase machadiana, são irremarcáveis ao se ler (ou reler) o francês; no entanto, e naturalmente, as divagações de Memórias póstumas de Brás Cubas carregam as transformações romanescas ao longo do século XIX para adaptar aquelas formas pré-romanescas que havia em Diderot e outros (como no italiano Giovanni Boccaccio).

Como se disse lá atrás, são várias personagens que contam suas histórias, ou seus amores, no curso de Jacques le fataliste. Muitas vezes (ou pelo menos, uma vez) uma criatura que era personagem numa história contada por outro surge na cena para contar uma história: como o marquês des Arcis, figura central duma história contada pela hoteleira, aquela do homem enredado, pela vingança duma mulher, num casamento com uma prostituta (este trecho de fúria feminina foi filmado por Robert Bresson numa de suas obras-primas), pois este marquês des Arcis vai aparecer entre Jacques e seu amo para contar uma história de seu secretário. “Il vient un moment où presque toutes les jeunes filles et les jeunes garçons tombent dans la mélancolie.” Esta complexidade de vozes de narrar tem uma estonteante simplicidade nos recursos primitivos de Diderot; mas o leitor de hoje não pode deixar de pensar em Jacques le fataliste como pré-proustiano. E estas vozes de narrar (o mais das vozes caracterizadas em diálogos que são introduzidos pelos nomes de quem fala) se assemelham a anotações teatrais. E estes diálogos, que buscam o natural, adquirem algumas complicações pela intromissão do autor, especialmente um autor do século XVIII. Lá pelas tantas, escorrega da pena de Diderot um termo inusual na linguagem corrente, “hydrophobe”. Aí a arte de Diderot intervém, buscando a explicação do narrador para a utilização desta “palavra do autor” na “boca da personagem”. “Non, lecteur, non; je confesse que le mot n’est pas lui. Mais avec cette sévérité de critique-là, je vous défie de lire une scène de comédie ou de tragédie, un seul dialogue, quelque bien qu’il soit fait, sans surprendre le mot de l’auteur dans la bouche de son personnage.” São detalhes de construção narrativa que tornam, aqui e ali, Jacques le fataliste numa atualidade formal surpreendente, em sua graça e acuidade.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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