Cinema: Um Solo de Artifícios

Garota exemplar se mantém um pouco a duras penas: não assume inteiramente seus artifícios, mas os usa em abundância

24/10/2014 11:20 Por Eron Duarte Fagundes
Cinema: Um Solo de Artifícios

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Ao introduzir para um pequeno e concentrado público, no Instituto Moreira Salles, no Festival do Rio 2014, seu filme Os maias, cenas da vida romântica (2014), extraído do original literário de Eça de Queirós, o realizador português João Botelho revelou que acredita no cinema como um artifício, que a vida mesmo é a que vivemos fora da tela, que o que está na tela é uma reprodução artificial, sombras elétricas somente. Apontava para a tela e parecia pedir que não esperássemos dele um cinema naturalista.

O conceito de artifício no cinema é também perseguido por um cineasta tão diferente de Botelho, o americano David Fincher. Como se volta a constatar em seu novo filme, Garota exemplar (Gone girl; 2014), obra que dividiu as opiniões por aí. É bem verdade que o artifício cinematográfico (o filme como um artefato visual) buscado por Fincher está muito distante do artifício intelectual buscado por Botelho, este meditando no cinema como pintura da literatura e expondo-se mesmo como artifício; Fincher está, opostamente a Botelho, bem ligado nos truques do cinema comercial (antes de mais nada, uma bem-feita narrativa de suspense) e o que se vê em cena é um artifício que quer mostrar-se ao espectador habitual dos filmes do gênero como algo natural, possível de acontecer na vida, ainda mais considerando-se que a vida moderna tem mesmo às vezes certas coisas mirabolantes, como estas travessuras que a personagem feminina do filme de Fincher propõe para divertir-se com seus parceiros de cena e com o observador na sala escura do cinema. A aceitação, parcial, total ou nula, dos artifícios de um formalismo comercial é que vai determinar como o assistente vai relacionar-se com um filme como Garota exemplar.

(Pode-se dizer que Garota exemplar segue o modelo de artifício cinematográfico criado pelo inglês Alfred Hitchcock em Um corpo que cai, 1958, especialmente ao construir a mulher de duas vidas que cria seus artifícios, que são encenações dentro da encenação, para ludibriar homens. É claro que Hitch é mais radical, estético e inventivo que Fincher.)

Lá pelo começo do filme, no diário de Amy, a garota malucamente exemplar, se lê, ouvindo na voz que articula uma narrativa paralela: “I’m crazy, stupid happy”. De uma certa maneira, esta criatura simboliza muito do que pretende o cinema de Fincher, aqui e sempre, sair atrás desta loucura de uma alegria um pouco estúpida dos seres. Ben Affleck, visto antes perdido nas densidades filosóficas de outro americano, Terrence Malick, Amor pleno (2012), é um pouco esta face da arte de Fincher: a alegre tolice de filmar, simplesmente. Se no filme anterior, Millenium, os homens que odiavam as mulheres (2011), a narrativa de Fincher naufragava junto com seus artifícios, e em A rede social (2010) ele atingiu o melhor habitat para exibir seus artifícios, o mundo da internet, em Garota exemplar ele permanece fiel ao conceito original de Botelho: cinema é artifício, não há o que fazer. Mas, embora parta de um original literário, escrito por uma badalada autora de suspense, Gilian Flynn, suas referências à literatura são transversas: para Marcel Proust, Fincher monta como personagem um caricato estudioso do escritor francês, afetado e pernóstico; para Jane Austen, a maravilhosa romancista inglesa da aristocracia rural, Fincher diverte-se com uma  alusão de leitura de adolescente alienada para os tempos de juventude da protagonista. O que ocorre, de fato, ao longo de sua narrativa, é que, de artifício em artifício, o solo de Garota exemplar se mantém um pouco a duras penas: não assume inteiramente seus artifícios, mas os usa em abundância. Uma espécie de pequena hipocrisia formal: na qual embarcamos com algum prazer e hedonismo. Como em Botelho (ou em Proust), mas diferentemente.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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