A Crônica Lírica Como Fonte Romanesca
O universo eminentemente literário de O Amanuense Belmiro já não teria lugar na produção contemporânea
O amanuense Belmiro (1937) tem uma estrutura de fragmentos, textos ou capítulos curtos que vão sem pressa compondo a trama narrativa, justaposição de flagrantes de vida que se colam ligeiramente revelando uma espécie de fôlego-a-espaços do narrador: uma composição, uma respiração, uma composição, quer dizer, um compasso ternário se pensarmos na música. O fôlego miúdo de seu autor, o escritor mineiro Cyro dos Anjos (esta é a grafia mais encontrada de seu nome, embora se tope também quem escreva “Ciro”), poderia evocar facilmente a estrutura dos romances de Machado de Assis, onde os capítulos muitas vezes simulavam contos, em que Machado foi exímio (no caso de Machado, houve quem associasse seu fôlego curto aos problemas de saúde, especialmente a epilepsia, que se agudizara a partir de 1881, justamente o ano de Memórias póstumas de Brás Cubas, pois se verifica nos romances da primeira fase, a dita romântica, que o fôlego de pouca extensão não era tão visível). Esta aproximação fácil entre Machado e Cyro plasma também a diferença entre os dois: se Machado como romancista nasceu do contista (um gênero ficcional), o Cyro romancista vem do cronista (que é mais uma fronteira entre o jornalismo e a literatura). As origens de O amanuense Belmiro são umas crônicas que, sob o pseudônimo de Belmiro Borba, o autor escrevera algum tempo antes num jornal mineiro: o flagrante lírico que dá a graça de um certo cronista vai emendar-se num romance cuja felicidade formal está precisamente em transformar este instante de lirismo intelectual num ato de fé na literatura quanto no pensamento. Transita com inegável perícia numa corda fina e perigosa: o lírico que se aproxima do patético e o intelectual que pode fugir para o pedante. Dá-se muito bem, como uma leitura atual o pode comprovar.
O português refinado e exigente de Cyro não impede a espontaneidade das situações narrativas, simulando seu acontecimento natural no momento mesmo em que estão sendo escritas. Desde o primeiro movimento. Desde a primeira frase. “Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, o nono, argumentando que esse talvez trouxesse uma solução geral.” O leitor não precisa de muito esforço para imaginar: um grupo de amigos reunidos num bar, enchendo a cara, buscando uma solução para o mundo. Um romance de ideias perdido entre os romances sociais dos anos 30 no interior do Brasil? Não propriamente. As ideias existem ali; mas o que há mesmo é uma atmosfera que põe em choque a natureza intelectual da personagem e suas rotinas de vida. Belmiro é um amanuense e também, pela pena de Cyro, um inocente mas agudo literato. Um burocrata e um lírico na mesma pessoa.
Tenho descoberto, quase sem querer, algumas sombras do romance de Cyro na literatura brasileira. O ficcionista gaúcho Liberato Vieira da Cunha (um cronista cujos textos em jornais parecem mesmo preparações para uma trama romanesca) começa seu romance As torrentes de Santaclara (1993) assim: “Pela altura do terceiro uísque, uma aura dourada costumava envolver a Criação, e Gino Taranto, Artista Itinerante de momento ancorado no bar ao ar livre da praça mais central de Santaclara, perguntou a si mesmo se algum dia seria bom o bastante para fotografá-la.” Quando confrontado por mim com esta ligação, Liberato ficou aturdido e respondeu que nunca lera o romance de Cyro. (Maldita a memória de quem passou boa parte da vida devorando livros!). Mas de fato: lidos lado a lado, O amanuense Belmiro e o livro escrito por Liberato impedem que se fale em plágio. O que ocorre é que Cyro dos Anjos é um cronista da feição espiritual de Liberato, embora este possa nunca ter lido aquele: o cotidiano como metáfora do cotidiano, a linguagem feita de elegâncias e de exigências e também de delicadezas. Ambos, Liberato e Cyro, têm um ritmo em algum momento próximo dos andamentos narrativos de Machado de Assis, mas em vários aspectos, cada um em seu tempo, marcados por afastamentos em relação aos pontos de vista machadianos.
Mais recentemente, e de maneira mais evidente que aqueles espantos de Liberato, o escritor mineiro Silviano Santiago pôs O amanuense Belmiro na ordem do dia ao homenageá-lo escancaradamente em Mil rosas roubadas (2014), um festejado (mui merecidamente) romance brasileiro de nossos dias. Santiago confessou abertamente que a ideia de mudar circunstâncias e pessoas reais em fatos e criaturas ficcionais nasceu de olhar para o livro de Cyro, que nada mais era do que seres em torno da vida do romancista convertidos em disfarçadas personagens. (Se dirá que, de certa maneira, isto acontece em tudo quanto é romance, mas não de maneira tão direta e vasta quanto, supõe-se, houve em O amanuense Belmiro). Em entrevistas, Silviano Santiago revelou que, ao ler o romance de seu patrício Cyro dos Anjos, identificou na personagem de Silviano, um filósofo que desde a primeira cena de bar defendia a condição católica, um antigo professor de filosofia dele, Silviano, o romancista de Mil rosas roubadas, e este professor era parente de Cyro, o romancista de O amanuense Belmiro. E Silviano, o romancista, na mesma entrevista, apresentou seu espanto: o Silviano-escritor nascera pouco depois de Cyro ter escrito O amanuense Belmiro, onde o Silviano-filósofo ganhava vida (o livro de Cyro, publicado em 1937, foi escrito por 1935, e Silviano, o escritor real, nasceu em 1936). (Todas estas correlações me conduzem a outras digressões de leituras: não faz muito, na França, o romancista Michel Houellebecq fez um grande barulho com sua nova obra, Submissão, 2015, por razões contemporâneas, como a ascensão do islamismo na França e na Europa, mas sua grande inquietação interna era literária, escavar, como Silviano Santiago em Cyro dos Anjos, numa pérola hoje pouco explorada, o texto do romancista novecentista Joris-Karl Huysmans).
Voltando a nosso objeto central de agora. O mundo em torno do qual gira a narrativa de O amanuense Belmiro é o pequeno universo interiorano. “A Rua Erê não é atrativa, neste particular, com sua reduzida fauna humana.” Mas o narrador-personagem deste romance-diário é uma alma culta; leu muito, ouve seus amigos intelectuais que discutem o catolicismo e as contradições de Pascal e, mesmo metido nos cenários pobres de Vila Caraíbas, traz das sombras uma leitura brasileira da natureza do tempo segundo o francês Marcel Proust. Lá pelas tantas o narrador sai-se assim: “Escapou-me ontem, à noite, esta lamentação: acham-se no tempo, e não no espaço, as gratas paisagens. Verifiquei este angustiante fenômeno quando, em 1924, fui à Vila pela última vez. O Borba já havia morrido, a fazenda passara a outras mãos e as velhas já aqui estavam com sua extravagante bagagem.” Com certeza, a mais proustiana passagem da literatura brasileira.
O universo eminentemente literário de O amanuense Belmiro já não teria lugar na produção contemporânea. Produção é um termo que sempre me pareceu um pouco deslocado quando se falava em livros. Como conceito do tempo do cinema, produção já faz mais sentido. As alusões a filmes (muitos filmes, de variadas latitudes) geram uma versão século XXI do pensador literário: é o que vemos em Mil rosas roubadas, onde o cinema parece roubar a cena da literatura. (Novo desvio: há um livro do gaúcho Antônio Carlos Resende, se não me engano, Mortes do amor, 2000, onde o rosário de citações cinematográficas preenche quase toda a narrativa). Há todavia um recanto onde Silviano Santiago esconde seu apreço por seu pioneiro, o homem que escreveu O amanuense Belmiro. Em ambos os casos, a utilização de fragmentos como método de composição. O fragmento-fôlego de Cyro é finalmente substituído pelo fragmento-colagem (à maneira do cinema, à maneira de Jean-Luc Godard) de Silviano. Trafegar entre estes dois extremos prazerosos, ou extremamente prazerosos, é uma das delícias do leitor, este indivíduo que, diz o narrador de O amanuense Belmiro, também ele um leitor inveterado, é “de certa forma, um escritor frustrado”, o qual, “incapaz de criar, compraz-se na criação alheia”, O leitor é, enfim, o verdadeiro plagiador.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br