A Acao Romanesca em Grau Maximo
Os Supridores eh um romance de acao, acao fisica mesmo
José Falero domina o senso da ação num romance. É o que se vê em Os supridores (2020), sua primeira narrativa longa. Os supridores é um romance de ação, ação física mesmo: está sempre acontecendo alguma coisa, uma ação suspende-se para outra, o leitor é preso em sua curiosidade de saber onde o caudal de ações das personagens vai dar, qual será a ação final que vai dar sentido causal a todos os outros gestos que vêm vindo história afora. Falero é um romancista autêntico: sabe fazer escorrer através das palavras criaturas inventadas que parecem vivas mesmo. Mas não é o romancista habitual a que a classe média que lê se acostumou: é intrinsecamente periférico; em seu texto os aspectos dos seres periféricos da grande cidade determinam a própria forma da linguagem com que Falero dá à luz sua literatura.
Falero vai compondo com rara precisão os modos de linguagem em que retrata seu universo literário. Nas falas das personagens, uma linguagem cheia de vivacidade de como se fala no cotidiano, a concordância e a sintaxe das ruas, aquelas de fora das páginas dos livros que agora ganham a dignidade da página dum romance que as recria, vamos dizer, com criatividade e poesia natural. O narrador, todavia, expressa-se numa outra linguagem: mais ligada ao chamado padrão culto. Mas mesmo aí, na expressão do narrador, a natureza da linguagem de lomba (o cenário é a Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre, lugar violento dos deserdados da sorte na sociedade) acaba trazendo sua forte influência, pois Falero é filho deste ambiente, é nestas circunstâncias que ele se criou e, ainda que suba alguns degraus, sabe ainda descer e misturar-se. Um dos achados de Os supridores é a intensidade de suas linguagens e suas fusões e cruzamentos.
Os supridores é um romance gaúcho de ação. Abre com uma frase característica do sul dita por uma personagem:
“—Bah, é mesmo, tchê? Mas que barbaridade!”
O primeiro cenário é o ambiente de trabalho dum supermercado da zona leste da cidade. Pedro e Marques, amigos extremosos e colegas de serviço, trabalham ali. O primeiro movimento é uma suspeita de desvios de suprimentos do mercado. A conversa inicial é entre chefes do supermercado. Os suspeitos são Pedro e Marques, mas faltam provas. No capítulo seguinte (todos os capítulos são titulados) a ação se desloca para o mundo de violência e drogas de Pedro, Marques e outros amigos: os diálogos caracterizam bem, a partir da linguagem, este outro universo. Falero lida com todos estes extratos, movendo-se de um para outro, com extremo senso romanesco. Algo em vários momentos apaixonante: pode ser lido nos gabinetes, mas poderia ser mais bem lido à beira da estrada da Lomba do Pinheiro, entre tiros e refregas. Os supridores é violentamente uma ação romanesca: desce pelos sentimentos do observador quase como uma montanha-russa; mas não é inconsequente nem superficial, faz um recorte social de grande força e necessária densidade.
Uma personagem, talvez a central, Pedro, o cérebro econômico e estratégico do grupo que constrói seus sonhos à margem do projeto estabelecido para as criaturas favorecidas de sempre, debruça-se sobre o cadáver da mãe dum parceiro: “Um ser que absolutamente invisível viera ao mundo, absolutamente invisível o habitara e absolutamente invisível desaparecia dele.” É também Pedro que, no fim do livro, preso finalmente, assume as rédeas da narrativa, desde o cárcere, e o narrador, gêmeo da personagem, anota: “E se tu, leitor, estiveres lendo isto, très bien. É porque Pedro conseguiu escrever tudo o que desejava.” A Lomba do Pinheiro desce na direção da literatura; ou talvez, e melhor, a escrita de Falero é feita de dentro da lomba, quase como um espelho à maneira daquilo que queria o romancista francês Stendhal.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br