O Cinema Literário de Allen em Seu Ponto de Intersecção

Allen põe muito de si em Manhattan, mas o subverte por sua condição de artista, aquele seu sarcasmo estético e particular de olhar o mundo

25/01/2018 12:20 Por Eron Duarte Fagundes
O Cinema Literário de Allen em Seu Ponto de Intersecção

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Os que dizem sem titubear que Woody Allen faz o mesmo filme sempre deveriam rever com atenção seus filmes mais antigos e perceber certas mutações que se afastam da ingenuidade e do frescor com que ele usava suas citações intelectuais de antigamente e maneira mais encorpada, um pouco engessada e certamente mais acoplada às narrativas como está em seus trabalhos atuais. Manhattan (1979) pode ser uma boa forma da revisão de Allen. O filme é um ponto de intersecção no cinema de Allen. Tem aquelas fragmentações episódicas do humor feito para a televisão que o cineasta então praticava e que até ali tornavam seus filmes mais curiosidades estéticas que algo capaz de arrebatar o espectador. No entanto, Manhattan vai, pouco a pouco, ao longo de sua projeção, adquirindo uma unidade em suas linhas desparelhas, com referências cinematográficas e literárias constantes e multiplicações amorosas que às vezes parecem uma transposição nova-iorquina do universo do diretor francês Eric Rohmer, que acaba enfeitiçando o assistente. Este feitiço nasce em parte do encantamento com que Allen transforma Manhattan em personagem de seu filme (assim como os brasileiros Luiz Sérgio Person e Walter Hugo Khouri o fizeram com a cidade de São Paulo nos anos 60), outro tanto da naturalidade com que o cineasta se vale de excertos de suas próprias vivências (o meio intelectual de Nova York) para compor seu mundo fílmico.

O protagonista de Manhattan é alguém com veleidade de escritor. Na abertura do filme, planos abertos em preto-e-branco da grande cidade, ouvimos sua voz tentar escrever a frase inicial dum romance, onde a cidade e a personagem são símbolos próximos entre si; o homem repete a frase diversas vezes, de formas diferentes, esforçando-se por achar o melhor jeito. Num filme posterior de Allen, Desconstruindo Harry (1997), esta questão metalinguística é visual: Allen põe diversas vezes, e com pequenas modificações, a cena duma mulher que desce dum carro. Em Manhattan a ex-mulher do protagonista (Meryl Streep, bem antes do estrelismo que muitas vezes estorvam sua veia de grande atriz) escreve um livro que o irrita porque expõe a identidade do casamento; em Desconstruindo Harry é o próprio protagonista que escreve suas memórias, escancarando certas coisas, tumultuando sua vida com as pessoas à sua volta. Allen repete-se? Na verdade, repõe certos procedimentos de modo diferente, para aprofundar ou rever o que ficou em seu passado de diretor. Como o espectador pode fazer, ao rever antigos filmes do realizador, para reconstruir seu passado numa sala de cinema e suas relações de natureza estética com um estilo de filmar que marcou a sétima arte para sempre.

Allen põe muito de si em Manhattan, mas o subverte por sua condição de artista, aquele seu sarcasmo estético e particular de olhar o mundo. Na época Allen estava saindo de seu relacionamento com Diane Keaton e logo começaria seu longo caso com Mia Farrow. Keaton é ainda uma das estrelas de Manhattan, ela estava então no auge de seu poder de intérprete e suas cenas no filme têm uma sedução forte. Num determinado momento a personagem de Diane e Woody conversam, embora estejam acompanhados de outras duas pessoas, com quem as personagens têm ligações sentimentais; a criatura de Diane debocha da admiração que Isaac (Woody) tem pelos intelectuais europeus, especialmente pelo cineasta sueco Ingmar Bergman (o tom e acentuação da voz de Diane ao pronunciar “Bergman” é devastadoramente humilhante), e Isaac (ou Woody) se enfurece; o assistente de cinema imagina que a sequência vai além das personagens e pode estar reproduzindo alguma coisa dos conflitos conjugais de Diane e Woody na vida real daqueles dias em que o casamento deles estava chegando ao fim.

Um dos polos narrativos de Manhattan são as relações sentimentais que põem em xeque o atrito de gerações. Isaac (42 anos) tem um caso com uma garota de 17 anos (Mariel Hemingway). Isto evoca por algum instante a parte mais sutil da trama de O joelho de Claire (1970), do francês Eric Rohmer. A própria ciranda amorosa como um todo tem alguma coisa dos filmes de Rohmer. Mais cáustico em Allen, mais rigorosamente cerebral em Rohmer. Neste aspecto uma imagem de segundo plano que fala da questão geracional-sexual silenciosamente é característica; enquanto personagens do filme desenvolvem no primeiro plano seus diálogos, neste plano quase oculto da mesa ao lado um velho e uma jovem tomam seu café como figurantes. Acaso? Ideia subjacente sugerida? Não se pode ignorar esta ideia de que se poderia estar insinuando estas relações sexuais entre um homem mais velho e uma adolescente estava na ordem do dia.

A própria relação de Isaac com sua jovem namorada é perversa. Ela está apaixonada por ele. Ele é distanciado emocionalmente com ela. Abandona-a para ficar com uma mulher mais velha, deixa-a chorando, depois ele é abandonado pela outra mulher, volta melancolicamente para esta primeira jovem, mas ela está de viagem marcada.

Manhattan é um filme que propõe um novo processo de sedução no cinema de Allen no fim dos anos 70. É a educação de sentimentos proposto por um homem de cinema que, revelado claramente nas evocações ao gravador que aparece no filme, leu o romancista francês Gustave Flaubert.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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